A rainha das rosas

É o cineasta dos excessos e das obsessões: "Eika Kattapa" (1969) apresentava os dados sincréticos do seu mundo numa fusão essencial; "A Morte de Maria Malibran" (1972) fazia explodir a sua relação complexa com os resquícios do canto operático; "O Reino de Nápoles" (1978) trabalhava sobre as ruínas de um neo-realismo larvar, enquanto "Palermo oder Wolfsburg" (1980), a sua obra maior, traçava paralelos com o Visconti de "Rocco e os Seus Irmãos".

Em dez dos seus filmes apareceu a perturbante de Magdalena Montezuma, diva de um cinema alemão marginal, corporização de um misto de "vamp" e vulnerável implosão do feminino (quase caricatural), num mundo de fortes conotações homossexuais. Com ela conviviam imagens fortes de mulher, desde a "fassbinderiana" Ingrid Caven, à estrela do cinema alemão do pós-guerra Christine Kaufmann, passando por Andréa Férreol e Bulle Ogier, ou a italiana Ida di Benedetto.

Na ausência da sua musa do passado, um "alter-ego" esfacelado, "Duas" é concebido para e por causa de Isabelle Huppert que já fora a protagonista de "Malina", de 1991, adaptação do romance de Ingeborg Bachmann, em colaboração com Elfriede Jelinek, a autora de "A Pianista", outro veículo para a genialidade "tocada em surdina" da Huppert. É pelo seu rosto tenso e assombrado que passa a trama interior desta autobiografia codificada.

As linhas mestras do argumento repousam numa ténue história: Bulle Ogier (em forma) encarna uma guarda ferroviária de Les Milles, onde viveu Van Gogh, que tem duas filhas - ambas interpretadas por Huppert - e um amante que é soldado. Com as personagens principais cruzam-se os habituais marinheiros (vindos de anteriores ficções, como "Weisse Reise" de 1980?), soldados e assassinos sem causa.

No horizonte, sempre um Portugal abstracto, batido pelo Atlântico e centrado na figuração de uma Sintra lunar, com o palácio da Pena e os seus monstros em fundo. "O Rei das Rosas" (1986) já encenara um Portugal alegórico no interior dos desejos secretos, tornados espectáculo exposto. As rimas são evidentes, mas perde-se a força espectacular do lugar mítico numa voluntariamente confusa visita a outras obsessões: "O Rei das Rosas" celebrava o cinema de Schroeter; "Duas" parece querer dissolvê-lo numa rarefacção impossível.

Filme lírico de difícil abordagem, pontuado por árias de ópera, pretende-se um exercício autobiográfico cifrado, com a Huppert a substituir-se à figura estilhaçada do cineasta.

Há momentos fabulosos, a lembrar o melhor Schroeter (as sequências da praia ou as cenas de amor entre mulheres), mas subsistem crípticas (e inúteis?) remissões para um "gore" artístico, que enfraquecem o efeito da "collage", uma "schroeteriana" essencial para consumo de fanáticos. Daí a dizer-se que o filme se destina exclusivamente a estes vai um largo passo: apesar das muitas exigências a um espectador militante, esta surrealizante autobiografia "em travesti" possui muitas maravilhas a descobrir. E a mais pequena não será decerto a sempre eterna redescoberta de uma Huppert inteligente, mergulhada nas idiosincracias do cineasta como se nunca tivesse passado por outros universos.

Atente-se, por exemplo, no seu olhar oblíquo para a câmara ou no modo como diz um texto alucinatório. Não será o filme para descobrir Schroeter, mas uma belíssima oportunidade para o reconhecer, contraditório e frágil, comovente e lúcido.

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