O homem sem qualidades

Muitas vezes o cinema aproveitou o "fait divers" como base de argumento, como ideia para criação de um universo que ultrapassa os limites do anedótico e do circunstancial.

"O Adversário" de Nicole Garcia vai ainda mais longe aotransfi gurar a arrepiante história do homem que vive a suamentira interior com tal intensidade, que não aguenta aexposição da sua integral fragilidade e só encontra como saída amorte quase sacrifi cial de todos os seres que ama, em vez de sedespir de uma fi cção sustentada durante anos.

O que é terrífico na fábula desfeita, que se ergue das ruínasde uma pequena crónica da não-existência, é precisamenteum olhar despido de emoção sobre um edifício social emdegenerescência de uma pequena-burguesia provincianaincapaz de acertar o passo com a sua própria e ridículaimagem.

Tudo o que em Balzac se podia revestir das tintas diáfanasda crónica social, ou o que no cinema de Claude Chabrol,o cineasta da França profunda, a braços com os seuspequenos crimes quotidianos de sobrevivência, assumiao poder quase caricatural de uma tara consentida,ascende no mundo rarefeito e depurado de Nicole Garciaà grandeza de um vazio total e abrangente. Não existenunca a tentação do psicologismo ou a ilustração fácil deuma psicose. Não há teorias ou vontades de analisar, anteso monstruoso do humano face ao mistério insondável daincapacidade de ser humano e vulnerável. Mais complexoainda, não se procuram razões ou justificações dequalquer espécie.

Claro que o projecto só existe por obra e graça de um actor:sem a neutralidade perversa de Daniel Auteuil, não passariaa sombra branca de uma loucura mansa e inexplicável.Sem o seu rosto opaco e fechado, a sua impassibilidadetorturada, mas fria, não teríamos nunca acesso aos abismosimpenetráveis de Jean-Marc Faure (nome que no filme deGarcia tem a fi gura de Jean-Claude Romand), escroque contrasua vontade, preso numa teia densa de mentiras-verdades.

rigor letal.

Pelo caminho, a escapelização clínica do "bisturi"de Garcia encontra a fi cção mediadora do romance de EmmanuelCarrère e não evita a carga romanesca que se investe noprotagonista, ao mesmo tempo real e ausente da sua realidade,fi gura e autor de um psicodrama de anulação e ausência. Operigo de roçar uma quase obscenidade do sentimento, umazona promíscua entre o pudor de expor um monstro que tem anossa cara e o desejo de superar a barreira do indizível faz dofi lme um objecto de tenebrosa incomodidade. O melodramaestá sempre no horizonte, mas nunca irrompe. O espectadornão possui a defesa do distanciamento fi ccional nem afacilidade da identifi cação imediata: fi ca numa área indistintade desconfortável interveniência, assistindo ao desenrolar dohorror, como num espelho deformado.

Sobre a mesma história, construiu Laurent Cantet ("RecursosHumanos"), seguindo a sua linha mais abstractizante, um estudodistante de personalidade, "L’Emploi du Temps", fi lme aindainédito em Portugal. Garcia opta pela difi culdade extrema,procura a objectividade, mas não prescinde do envolvimento nasimplicações ontológicas de um caso que nunca aparece tratadocomo um caso exemplifi cativo ou meramente tipifi cado.Existe no fi lme um momento particularmente terrível, emque a fi lmagem nua e crua dos acontecimentos esbarra com abarreira da consciência do acto: sempre executando os seresamados de costas ou no sono, o protagonista depara-se comuma difi culdade, a da personagem (nem importa qual delas,de tal modo se reduzem a etapas de cruento ritual) que seapercebe do sinal de morte — a solução é desviar o olhar ouinterpor o braço, tornando o gesto ainda mais mecânico emais desgarrado, portanto mais essencial.

No centro do "terror" está a música gélida de AngeloBadalamenti a marcar o ritmo glacial com que o espectadorse confronta, para suportar o insuportável. E este terrífi coretrato de "um homem sem qualidades", nem reconhecíveisrefl exos humanos, exercício quase niilista de desespero surdo,cumpre-se com rigor letal.

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