Homens para queimar

Sacrifício é a palavra-chave de K-19. Ao contar a história de um submarino soviético, em 1961, que colocou o mundo à beira do conflito nuclear, a realizadora Kathryn Bigelow transportanos ao universo moral dos grandes clássicos americanos. Estreia hoje e é emocionante.

Há várias razões para não menosprezar "K-19", o regresso ao contacto com o trabalho de Kathryn Bigelow depois do enorme "flop" que foi, em meados da década de 90, esse incomparável "Strange Days"/"Estranhos Prazeres", de 1995. "K-19" está longe de ser um filme particularmente esfusiante, como se calhar (e à parte o citado "Strange Days") nenhum fi lme de Bigelow é. Mas há nele algo mais do que apenas rotina bem oleada: há uma visão sobre as coisas e sobre os homens, há um discurso sobre a existência, este é um fi lme de uma cineasta que normalmente tem qualquer coisa a dizer. E até há, se quisermos chegar aí (pela razão de que o fi lme surge na conjuntura geopolítica em que surge e que todos sabemos qual é), um enunciado de fundo político que talvez não seja para negligenciar.

"K-19" conta a história, durante anos mantida secreta, da viagem inaugural de um avançadíssimo submarino nuclear soviético, viagem que deu para o torto. Estava-se em 1961 e, pouco tempo antes da crise dos mísseis de Cuba, o mundo esteve, sem o saber, na iminência não apenas de uma explosão nuclear de poder várias vezes superior ao de Hiroxima como de uma eventualmente devastadora sequência bélica dessa explosão — o pano de fundo das tensas relações EUA/URSS incendiar-se-ia ao menor mal entendido, como certamente seria uma explosão nuclear de origem soviética em águas controladas pela NATO. O fi lme de Bigelow é, portanto, a história dessa iminência e, sobretudo, dos homens — a tripulação do submarino — que a evitaram. A História não registou o feito porque ofi cialmente nada aconteceu, e os heróis do "K-19" fi caram por reconhecer porque, pelo menos para as autoridades soviéticas, o tempo de paz não é tempo de heroísmo.

guerra e paz.

Filme de guerra em paz, tem a curiosa característica de repescar os tempos da guerra fria para reconhecer o heroísmo do inimigo — mesmo que, segundo aquela conhecida vocação do cinema americano que para uns é universalista e para outros imperialista, também possa ser visto como um fi lme onde a América conta a história que a União Soviética não contou (o que faria de "K-19" ainda um resquício da guerra fria). Mas será que isso, e toda a extrapolação de cariz político que daí se permite, é verdadeiramente importante? Sem anular essa vertente, que é também uma conversa sobre a irónica dimensão psicanalítica dos rituais da guerra fria ou quente (toda a viagem do "K-19" tinha como objectivo mostrar aos americanos que o submarino russo era maior do que o deles) e, mais a sério, sobre a cegueira "trigger happy" que periodicamente atinge os principais líderes mundiais, dir-se-ia que o fi lme vai anulando a importância das nacionalidades em questão, ao ritmo em que as personagens, que no princípio do fi lme enrolam muito os "rrs" para parecerem mais russos, vão perdendo o sotaque. A dimensão que, dramaticamente, mais importa a Bigelow é a mais básica de todas: um grupo de homens, num espaço fechado, com uma tarefa a cumprir em risco da própria vida. Que sejam russos, povo especialmente atreito à tragédia (já Jean-Luc Godard dizia que quando os russos viram o comboio dos Lumière a chegar à estação do que se lembraram foi de Anna Karenina a atirar-se para baixo dele) e às tragédias (contem as dos últimos anos, de Chernobyl ao Kursk e ao massacre no teatro), é apenas um pormenor, de efeito mais dramático do que político.

sacrifício.

"K-19", naturalmente, é um f lme de homens. Mais um na curiosa carreira de "action woman" de Kathryn Bigelow, 51 anos, que gosta de brincar com os estatutos do "gender" — lembre-se a masculina Jamie Lee Curtis de "Blue Steel" (1990) ou a inversão da dupla Ralph Fiennes/Ângela Bassett (ela era o homem, ele a mulher) em "Strange Days". Aqui estamos numa instância militar, há menos ocasião para brincadeiras desse género. Mas mesmo assim....

Mesmo assim é irresistível ver no comando bipartido do submarino, a cargo das personagens de Harrison Ford e Liam Neeson, uma certa oposição entre o masculino e o feminino: Ford, o pai severo, Neeson, a mãe compreensiva, dentro da família (expressão usada mais de uma vez no fi lme) que é a tripulação do submarino. Lógica, aliás, que pode ser prolongada no arco da mais trabalhada personagem do fi lme, o jovem engenheiro Vadim (Peter Sarsgaard), que é uma espécie de fi lho protegido em quem se depositam todas as esperanças, e que depois de as decepcionar se redime através do mais radical sacrífi cio pessoal.

Sacrifício — é a palavra-chave de "K-19", é, no fundo, what its all about. No seu melhor (ou seja, se ignorarmos a sopa e a ganga que são porventura inevitáveis num fi lme americano de grande produção contemporâneo), "K-19" transporta-nos ao universo moral dos grandes clássicos americanos (sim, esses mesmo, Hawks, Ford, e alguns outros), e sobretudo ao universo moral dos fi lmes que eles fi zeram sobre homens para queimar. Aliás, repare- se que Bigelow mantém a acção propriamente dita num registo formal bastante seco, sem grandes piruetas ou invenções, e sem se incomodar com o facto de num fi lme quase todo passado dentro dum submarino os planos têm tendência a parecer-se uns com os outros. Procurem planos originais (ângulos bizarros, picados, contra-picados...), procurem efeitos de virtuoso, e fi cam de mãos a abanar. Mais: só encontram planos onde os actores são enquadrados à altura da câmara, só há planos rente ao chão se o actor estiver deitado — se isto não é um reviver do célebre pragmatismo hawksiano (a câmara à altura do homem) não sabemos o que será. Sabemos é que é a maneira, provavelmente a única maneira, de fi lmar o sacrifício individual em prol da comunidade. Não será por acaso que o grande centro dramático do fi lme é a longuíssima sequência da reparação do reactor, quando um a um os marinheiros se vão submetendo doses cavalares de radioactividade, sempre fi ngindo que não sabem que, a partir daí, a sua morte é certa. É por aí, aliás, que a personagem de Sarsgaard se destaca: ele é o único que, vítima de um ataque de pânico e cobardia, se recusa a entrar na sala do reactor. Depois, sabe o que tem a fazer para recuperar a auto-estima, e para quebrar a solidão a que fi ca condenado. Personagens assim vêm de outro tempo — talvez do tempo de Richard Barthelmess em "Only Angels Have Wings", de Hawks.

Sugerir correcção
Comentar