O Virtuoso

"Cineasta importante procura um tipo vulgar para o papel principal do seu próximo filme", dizia o anúncio que apareceu no jornal "The Guardian", incitando anónimos a concorrer a sessões de "casting" para "O Pianista". O cineasta importante era Roman Polanski, que regressava ao cinema com um filme pessoal - um filme em que o realizador se esconde na história de um sobrevivente do Holocausto, o pianista polaco Wladyslaw Szpilman, e assim evoca a sua própria história.

E quem era o tipo vulgar? Polanski terá visto cerca de 1500 desconhecidos, mas só encontrou mesmo aquilo que procurava quando olhou para um actor profissional, Adrien Brody. Que pode ser "um tipo vulgar" - o seu rosto tem aquela qualidade neutra que permite que nos projectemos nele como numa tela em branco. Mas não é propriamente um desconhecido.

O nova-iorquino de 29 anos - um rapaz sério, retraído - já se destacou como um punk rock fora da lei no filme de Spike Lee "Verão Escaldante", e foi um comovente agitador, traquinas como um herói de BD, em "Bread and Roses", de Ken Loach. Só esses papéis dão para identificar o tocante virtuosismo que existe em Brody, e que faz lembrar os inícios de carreira de outro nova-iorquino, Robert De Niro.

Agora, com "O Pianista", integrou a lista das "interpretações de classe" de 2002 - algumas das mais badaladas do ano - feita pela revista norte-americana "Premiere", ao lado de Jack Nicholson ("About Schmidt"), Renée Zellwegger ("Chicago"), Edward Norton ("25th Hour") ou Michael Caine ("The Quiet American"). Assim, é mais fácil esquecer fiascos como a sua participação em "A Barreira Invisível", de Terrence Mallick, em que rodou aquele que seria um dos papéis principais, mas em que acabou no chão da sala de montagem, a sua actuação ficando praticamente reduzida a uma figuração.

Mas a sorte mudou. Brody está a receber críticas entusiastas pela sua actuação no filme de Polanski (que foi galardoado com a Palma de Ouro do Festival de Cannes) e parece pronto para as glórias do Óscar.

"Não estou desapontado com alguns eventuais falhanços, tudo isso faz parte do jogo", diz o actor. "Obviamente, estou a tentar fazer coisas maiores e melhores, mas é difícil encontrar o papel certo num filme de estúdio que poderá ser visto por muitas pessoas, e ainda poder gozar uma espécie de liberdade artística. O que é fulcral em 'O Pianista' é que tem todos os ingredientes que eu sempre quis ter numa experiência de actuação. Para mim, como actor, foi uma viagem fenomenal trabalhar com um realizador por quem nutro profunda admiração e fazê-lo com o orçamento de um filme de estúdio - mas sem a interferência do estúdio. A visão do realizador conseguiu manter a sua pureza."

subtileza e horror.

Polanski, é claro, nunca faria um filme sobre o Holocausto sem usufruir de completa liberdade. Agora, depois de ter passado a vida a dizer que nunca faria esse filme, o realizador de 69 anos, de origem polaca, fez uma obra pessoal que convoca a sua experiência no gueto de Cracóvia. "O Pianista" não é a história da vida de Polanski, mas da vida do pianista judeu polaco Wladyslaw Szpilman, que viveu com os elementos da sua família no gueto de Varsóvia, até que todos foram enviados para o campo de extermínio. Wladyslaw conseguiu sobreviver, vivendo na clandestinidade durante a guerra, contando com a ajuda de amigos e admiradores, à semelhança de Polanski, cuja mãe foi morta, enquanto ele foi separado do pai.

A outra semelhança entre a vida dos dois homens é que ambos partilharam a mesma atitude em relação ao Holocausto: raramente discutiram o assunto e observam tudo com pouco sentimentalismo. E ambos prosseguiram com as suas vidas e alcançaram fama e fortuna.

"Acho que o Roman queria que o filme mantivesse um tom não sentimental", afirma Brody, que seis meses antes da rodagem passou algum tempo com Polanski, que lhe terá falado da sua experiência ("mas isso vai ficar entre nós", mantém o actor). "Era muito importante para mim não fazer uma interpretação sentimental, e procurar um registo realista e subtil. Tudo tinha que ser tão real quanto possível para poder agir em conformidade com o que Roman queria. O filme tem um olhar voyeurista, tipo documental, de modo que a audiência é capaz de sentir algo à medida que observa as experiências da personagem, mas sem ser forçada à emoção."

Classificar "O Pianista" como mais um drama sobre o Holocausto é estar um bocado longe da verdade. Polanski mostra estar novamente na posse do seu talento perdido durante o "exílio" em França, mostra a sua força criativa e apresenta a vida no gueto tal como ela era. No final de contas, Steven Spielberg nunca esteve lá.

"Considero 'A Lista de Schindler' um filme fenomenal", assegura Brody, que é filho de pai judeu e de mãe católica - apesar de ter sido criado com pouca religião. "Penso simplesmente que Roman tem uma forma de olhar única e que Spielberg vê as coisas sob outro prisma. Tudo isso tem a ver com a intenção do realizador. Roman tem um conhecimento profundo da dor e sabe mais sobre este período do que alguma vez alguém saberá. O realismo deste filme mostra muito claramente a forma como os judeus foram torturados."

É certo que testemunhamos no ecrã o horror e o aleatório das mortes no gueto, onde os judeus podiam ser repentinamente baleados ou atirados janela fora. "Roman tinha ideias muito concretas sobre a forma como as coisas se deviam conjugar", lembra Brody. "Até na maneira como trabalhava com os figurantes. No filme, na cena em que uma mulher é morta a tiro, caindo em cima do filho, Roman mostrou à mulher exactamente o que queria que ela fizesse. O resultado de tudo isso é que as imagens são poderosas."

Uma das descobertas de Brody durante a experiência de rodagem de "O Pianista" foi o facto de os judeus nunca estarem realmente informados sobre o que se passava. "Os nazis tinham uma maneira muito calculista, manipuladora, de ir fazendo devagarinho, pouco a pouco, as restrições e o isolamento e, por último, colocando os judeus nos guetos e transportando-os para o extermínio. Foi um processo muito lento, sorrateiro. A dada altura não lhes era permitido passear no parque; depois não lhes permitiam frequentar um certo café; no minuto seguinte estavam a ser desalojados e enviados para outras casas, porque os nazis não os queriam por perto. Foi então que se deu o descalabro. O mundo nunca tinha experimentado algo semelhante, e é muito difícil compreender aquele grau de desumanidade e de ódio. Posso imaginar que as pessoas não podiam prever o passo seguinte, e por isso estavam enfraquecidas e bastante impotentes quando chegou a 'solução final'. Acho que reagiram de forma demasiado passiva na altura, mas pensavam que as coisas iam acabar, e quando percebiam que ainda havia o campo de concentração já estavam desprotegidos, já estavam despojados da sua força."

Quando se passa fome não se pensa como deve ser. Depois do gueto, Szpilman escapou e foi alojado num sótão, onde tinha muito pouca comida e esteve entregue a si próprio durante semanas. Brody fez uma dieta compulsiva para simular o estado mental de Szpilman: perdeu 15 quilos, comendo só um ovo cozido ou um bocado de galinha, enquanto o álcool e o açúcar foram eliminados por completo. De noite chegou a ter sonhos alucinatórios.

"A situação obrigou-me a colocar muitas coisas em perspectiva", diz. "Felizmente nunca passei fome na vida, e é incrível perceber, depois de compreendermos essa situação, como a fome altera todos os aspectos da nossa personalidade; todos os pensamentos se atropelam em círculo, todos à volta de uma mesma coisa: a ânsia por qualquer forma de sustento. Há um grande vazio dentro de nós. Ficamos a flutuar. Posso agora ter muito mais empatia com o sofrimento das pessoas e ter uma melhor compreensão da sorte que tenho. Para além do meu sucesso como artista, tenho boa saúde, um tecto e a minha família, pelo que posso considerar-me sortudo."

Mas Brody deixou tudo isso para trás para fazer "O Pianista". "Tentei livrar-me de tudo o aquilo que eu era, tudo o que dizia respeito àquele rapaz urbano e bem enraizado na cultura americana. Saí do meu apartamento em Nova Iorque, vendi o meu carro, cortei o acesso ao telefone e à mulher amada, assim como à família e amigos, deixei de ouvir música e deixei de sair. Tornei-me introvertido e solitário."

o mais desafiador.z/b> Adrien Brody nasceu em Nova Iorque em 1973, numa zona de Queens habitada por intelectuais de esquerda. O pai é professor de Sociologia e pintor, e a mãe, que nasceu na Hungria, é repórter fotográfica. Foi ela que o matriculou na American Academy of Dramatic Arts, quando Adrien tinha 12 anos, para o pôr a salvo das más influências da malta do bairro. Como ele diz, ser actor não era propriamente uma vocação.

Em 1989, estreou-se no cinema em "Life Without Zoe", o episódio de Francis Ford Coppola para o filme "New York Stories". Na década de 90 fez "sitcoms" e cerca de um filme por ano. Após "A Barreira Invisível", procurou sempre algo especial, até que finalmente encontrou: o filme de Polanski.

"Fiz muita pesquisa para conceber a personagem", conta Adrien. "Foi muito importante não ter feito uma abordagem tal como faço com personagens mais contemporâneas, que é o tipo que sempre fiz. Senti uma enorme responsabilidade, porque o filme era muito pessoal para Roman, senti esse peso. É provavelmente o papel mais difícil a que tive que dar corpo, mas foi definitivamente o período mais desafiador da minha vida. A personagem não tem nada a ver comigo, foram seis meses de rodagem, ao qual antecedeu bastante tempo de preparação e depois um longo período de recuperação."

Uma interessante revelação em "O Pianista" é que nem todos os alemães eram maus nesta história verdadeira - e isso já é algo que excede aquilo que se pode esperar de um drama sobre o Holocausto. Na realidade, um oficial alemão culto (interpretado pelo antigo atleta olímpico da ex-RDA, Thomas Kretschmann) salvou a vida de Szpilman. Em contrapartida, Szpilman tentou salvar, mas sem sucesso, a vida do amigo no período após guerra, enquanto o ex-oficial morria num campo de trabalhos forçados na Sibéria. Polanski encontrou-se com a família do oficial, tal como com a família do verdadeiro Szpilman, que morreu há dois anos, com 88 anos de idade. O filho de Szpilman, Andrzej, vive em Hamburgo, foi conselheiro do filme, e diz que foi melhor o pai não ter sobrevivido para ver o filme. Embora exerça a profissão de dentista, é músico nos tempos livres, tal como Brody, que tem a sua banda de hip-hop (Adrien foi muito influenciado pela agressividade da cena hip hop dos anos 70/80, em Nova Iorque, e ainda sonha com a hipótese de gravar um disco).

"Andrzej compõe música no computador, mas é um músico com muito mais treino do que eu", admite Brody. "Ele cria um estilo diferente de música, mas deu-me alguns programas musicais que vão melhorar a minha própria música. Por isso, ao interpretar Szpilman - e não só por aprender a tocar piano - fiz com que minha música amadurecesse."

Brody nunca tinha tocado piano antes de fazer o filme, mas a sua actuação é impressionante. "Yeah," admite, regressando novamente ao estilo nova-iorquino. "Aprendi a tocar de memória porque não sei ler muito bem as notas musicais - a música que faço é sequencial, são 'beats'. Mas não poderia ter compreendido a relação incrível entre o pianista e a sua música, tão forte que o manteve vivo, se não tivesse aprendido a tocar Chopin." E não há momentos no filme em que é dobrado por um profissional? "Alguns, obviamente", ri, "porque não há maneira de dominar Chopin tão bem! Se fosse o caso, bem podia abandonar a interpretação e concentrar-me no piano. Mas, graças a Szpilman, tornei-me melhor músico".
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