Mundo Canibal

Em "Dragão Vermelho", Anthony Hopkins visita Hannibal Lecter pela terceira vez. É também um regresso a outros tempos, quando o nome do mais famoso psicopata do cinema era Lektor e não Lecter, e o corpo que o habitava era outro. Percurso de um canibal pelo cinema.

"Dragão Vermelho", de Brett Ratner, que hoje se estreia, é um objecto insólito: "prequela" de "O Silêncio dos Inocentes", de Jonathan Demme, e de "Hannibal", de Ridley Scott, é também um "remake" de "Manhunter", a primeira adaptação do romance de Thomas Harris, assinada por Michael Mann, com que, no longínquo ano de 1986, se iniciou a relação de Hannibal Lecter com o cinema. "Manhunter" foi um dos melhores "thrillers" dos anos 80, mas poucos repararam. Admirado por alguma crítica e ignorado pelo público, tornou-se filme de culto. Dentro do universo Lecter, faz figura de "outsider", pois aquele que numa sondagem foi considerado o mais popular "monstro" da história do cinema era aqui apenas uma personagem lateral, com direito a três cenas.

Todo o filme girava à volta de Will Graham, o agente do FBI que quase morreu ao prender Lecter e que regressava da reforma auto-imposta para ajudar na captura de um novo "serial killer". Interpretado por um fabuloso (e esquecido) William L. Petersen (protagonista de um outro grande policial da época, "Viver e Morrer em Los Angeles"), é um dos "heróis" mais complexos do género: torturado e obsessivo, com a peculiar capacidade de duplicar o processo mental dos assassinos que persegue e de pensar como eles, através de uma empatia psíquica. Este dom/maldição, que o faz adoptar o estado de espírito de um criminoso, provoca em Graham um pesado fardo emocional que o leva a um estado de ansiedade e confusão, próximo da loucura.

Já Lecter (que no filme de Mann se chamava Lektor), brilhante psiquiatra que é também um psicótico canibal, é o exemplo acabado do velho cliché de que a genialidade e a loucura andam de mãos dadas. Sofisticado e erudito, a sua inteligência só é equiparável à percepção quase absurda que demonstra e que lhe permite, mesmo confinado a um espaço exíguo, fornecer a Graham (que considera um igual) as pistas (crípticas, é certo) para a resolução do caso, como uma versão psicopata de Sherlock Holmes (no fundo, também é detective). Visto à luz dos posteriores filmes da série, o Lecter do escocês Brian Cox (actor de teatro clássico em hábil "underacting") era um esboço, onde já se encontravam as "marcas" (sobretudo o humor negro) que outro britânico, Anthony Hopkins, trataria de desenvolver.

Quanto ao filme, era um produto típico do seu tempo e do universo do realizador. Mann, que acabara de criar "Miami Vice", estrondoso sucesso televisivo, transportava o "design-chic" da série para o filme, banhando cada cena com luxuriantes tons pastel, azuis, vermelhos ou brancos, captados pela superlativa fotografia de Dante Spinotti. As sombras e a escuridão normais num "thriller" (e que estarão presentes em "O Silêncio dos Inocentes") eram substituídas pelo brilho e pela luz, numa abordagem "modernista" ao género. Talvez esteja aqui, na exuberante sofisticação visual do filme, uma das razões para o falhanço (as receitas de bilheteira foram inferiores ao salário de Hopkins em "Hannibal"): objecto admirável mas frio, negando ao espectador a envolvência que o filme de Demme iria possibilitar. O esquecimento em relação a "Manhunter" é tal que, após sucesso de "O Silêncio dos Inocentes", o filme começou a passar na TV com outro título, para que as pessoas pensassem que era uma sequela...

E chegava Hopkins. Quando, em 1991, Hannibal Lecter regressou aos ecrãs, interpretado por Hopkins, os contornos da sua "persona" ficam claramente definidos e ajudam a explicar o fascínio que passou a exercer no imaginário colectivo e o seu estatuto de ícone: culto e sedutor, atractivo e cortês, representa também o lado mais irracional do homem, entregando-se a brutais actos de canibalismo e abandonando qualquer juízo moral. Ao contrário do que acontecia no filme anterior, Lecter tem um papel mais importante no desenrolar da intriga, ao ajudar a protagonista, Clarice Starling (Jodie Foster), ambiciosa estagiária do FBI, a capturar um novo "serial killer" ("Buffalo Bill"), em troca de informações sobre traumas do seu passado.

Lecter vai estabelecer com Clarice, idealista e inocente, uma relação de cumplicidade, quase de mentor e aluno, que seria impossível com Graham, o responsável pelo seu encarceramento. Aliás, o filme pode ser visto como a luta de uma mulher para se afirmar num mundo de homens e se libertar da influência das figuras paternas que a procuram orientar. Também o facto de Starling o atrair sexualmente contribui para a criação de um Lecter mais "humano" do que o do filme de Mann, lógica que vai continuar em "Hannibal".

Aproximando-se do género de forma mais tradicional, "O Silêncio dos Inocentes" é um "thriller" lúgubre, dirigido pelo magnífico artesão que é Demme. Grande sucesso de público e de estima (galardoado com os cinco principais Óscares, o que até então só tinha acontecido com "Uma Noite Aconteceu", de Capra, e "Voando sobre Um Ninho de Cucos", de Forman), passou a servir de modelo a inúmeras ficções que fizeram do "serial killer" um dos mais populares (e estafados) estereótipos do filme de terror/suspense.

Paródia "gore". No entanto, foram precisos dez anos para que chegasse a inevitável sequela, "Hannibal", adaptada do romance de Harris publicado em 1999. Realizado por Ridley Scott, foi um sucesso ainda maior do que o filme de Demme, apesar de não ter sido muito bem recebido pela crítica. Toda a lógica do anterior é subvertida.

Desde logo, como o título indica, a personagem principal já não é Clarice, mas Lecter, que trocou o asilo por Florença, cidade das artes, onde assume a identidade de um historiador de arte e desempenha o cargo de conservador da Biblioteca Capponi (acentuando assim o lado de homem de gosto refinado), chegando quase a assumir a dimensão de esteta. Além disso, não há por aqui nenhum psicopata que precise de ser capturado, mas uma galeria de personagens não propriamente inspiradoras, desde Verger, horrivelmente desfigurado (irreconhecível Gary Oldman), ao asqueroso agente do FBI interpretado por Ray Liotta, passando pelo torturado inspector italiano (um óptimo Giancarlo Giannini). Isto faz com que, a par de uma Clarice mais velha e experiente, o psiquiatra antropófago seja a personagem mais "simpática". É um Lecter cómico e "campy", aproximando-se o filme da paródia e da comédia negra. Mas também das histórias de amores impossíveis, como o de Lecter por Clarice (interpretada por Julianne Moore, que é mais carnal e voluptuosa). Fica-se mesmo a pensar que ele seria capaz de desistir dos seus hábitos se ela aceitasse o seu amor (o que é mais suave do que o final do livro, em que Lecter perdido de amores faz uma lavagem cerebral a Clarice, que se torna canibal e sua companheira...), ideia que sai reforçada quando, tendo de se livrar das algemas que os prendem um ao outro, decide sacrificar a própria mão para não ter de cortar a dela. Rejeitando a subtileza de "O Silêncio...", o filme de Scott, barroco e excessivo, leva a série para novas direcções.

Regresso ao passado. E assim chegamos a "Dragão Vermelho", regresso ao passado, à história já contada em "Manhunter" e ao tom mais "sério" de "O Silêncio..." (com o qual estabelece rimas óbvias - o argumentista é o mesmo, Ted Tally, e até a cela de Lecter é igual...). Hopkins está tão indissociavelmente ligado a Lecter que o filme é anunciado como o primeiro capítulo, cronologicamente falando, de uma trilogia que na realidade já tinha sido completada, ou seja, a sua natureza híbrida, entre "remake" e "prequela", situa-o numa espécie de limbo temporal: ao revisitar uma história já conhecida, polvilha-a de piscadelas de olho e de remissões para situações e imagens que lhe são posteriores.

O problema de "Dragão Vermelho" é simples: os actores são bons, mas Ratner não é Demme nem Mann (nem sequer Scott). Além do mais, o Graham de Edward Norton é menos sombrio que o de Petersen, perdendo-se toda a temática da transferência de culpa que Mann tão bem explorava.

Neste sentido, pode-se dizer que, apesar de "Dragão Vermelho" ser mais fiel à letra do romance de Harris, é "Manhunter" que está mais próximo do espírito. Com mais "screen time" do que Cox, Hopkins é um Lecter mais monstruoso e malévolo do que o de "Hannibal", mas a novidade perdeu-se. Consciente da "herança" de que é devedor, de qualquer forma, o filme tem a preocupação de terminar com uma referência oblíqua a Starling: o círculo fecha-se e regressamos ao início da saga Hopkins/Lecter.

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