Humm... Diria Que... Citando Kierkegaard...

Estarão acordados ou fazem parte de um sonho? São pessoas ou bonecos? E não os vimos já em "Antes do Amanhecer"? Ethan Hawke disserta filosoficamente na cama, ao lado de Julie Delpy. "Waking Life", inédito comercialmente em Portugal, passa esta semana no Cine 222, em Lisboa. Ao Y o realizador, Richard Linklater, explicou como é que a filosofia se junta ao cinema de animação.

Richard Linklater foi em tempos um realizador badalado, ainda antes de Quentin Tarantino ter aparecido. Através de filmes como "Slacker", "Dazed and Confused" e "Antes do Amanhecer", o texano dirigia-se a uma geração - a geração X, a dos "slackers" (indolentes) -, enquanto Kurt Cobain pregava o "grunge", o seu equivalente na música. Infelizmente, todos temos que crescer, e os tempos mudaram. Mesmo assim, Linklater e o seu frequente colaborador Ethan Hawke continuam em busca de desafios, e lançam-se agora em novas explorações por via da tecnologia digital.

Falamos dele aqui por causa do filme de animação digital "Waking Life", onde combina os talentos do mago de animação por computador Bob Sabiston com um sofisticadíssimo "software", que faz com que as imagens possam pulsar e mover-se como sugerem a arte psicadélica ou impressionista. Ethan Hawke faz uma breve aparição, dissertando filosoficamente na cama ao lado da sua companheira de "Antes do Amanhecer", Julie Delpy. Estarão acordados ou fazem parte de um sonho? É como se "Antes do Amanhecer" nunca tivesse chegado ao fim.

Nada é muito seguro no vibrante mundo giratório de Linklater. A personagem principal de "Waking Life", interpretada por Wiley Wiggins, actor de "Dazed and Confused", pondera as grandes questões existenciais - o caminho para a iluminação espiritual, pós-modernismo, reencarnação, citanto Kierkegaard, Sartre e outros. Metade imagem real, metade animação para adultos - Linklater filmou com actores "de carne e osso" e depois trabalhou as imagens como animação - "Waking Life", como os Simpsons, pronuncia o impronunciável e, de certa forma, visualiza-o. Inédito comercialmente em Portugal, vai poder ser visto em Lisboa, no Cine 222 (dias 19, 20, 23, às 17h, 19h15 e 21h45), integrado num ciclo de animação que aí promove a Associação Zero em Comportamento.

viagem mental. "É um filme que eu tinha na cabeça há muito, muito tempo, e parece-me que a altura era ideal, a tecnologia já estava a par da ideia", explica o realizador, em conversa como Y. "Não teria resultado se fosse só imagem real, ficaria demasiado piroso. Os filmes não são um grande veículo para ideias - a maior parte não tem mais do que uma ideia. Foi interessante fazer um filme sobre ideias, a estética do pensamento, que não é só filosofia e coisas do género. Abrange muitas áreas e tem o seu próprio enredo."

Por exemplo? "Não consigo resumir um filme em meia dúzia de palavras", defende. "Gosto de fazer filmes que são difíceis de descrever. O primeiro que fiz, 'Slacker', era assim e 'Waking Life' também. Mas as pessoas torná-lo-ão compreensível, descrevendo-o em termos sociológicos", diz, com algum desdém, "para que todos possam aceder. Temos a tendência para arrumar acontecimentos e artistas nos seus lugares para que tudo faça sentido".

Mesmo que Linklater se tenha debatido com dúvidas existenciais durante a realização do filme, não se pode censurá-lo por isso. A vida não tem sido fácil para ele, desde que atingiu a notoriedade. A sua grande produção de Hollywood, "The Newton Boys", que juntava a coqueluche de então, Matthew McConaughey, e Ethan Hawke, foi um fracasso. "Foi difícil ultrapassar um filme que não foi bem recebido", admite. "Mas eu gosto bastante do filme. Era a minha história do Texas e era tão pessoal para mim como qualquer outra coisa que fiz."

Não há dúvida de que se sente mais confortável com orçamentos modestos. "'Waking Life' custou uns quantos milhões, não muito. Fizemo-lo nos nossos computadores, em Austin. Custou 100 vezes menos que 'Shrek' ou 'Monstros & Companhia'." Que não tenha sido nomeado para os Óscares, parece, no mínimo, incompreensível, afirma. "É enorme o contraste com esses filmes engraçadinhos para crianças. São dois universos diferentes, mas é assim que a animação deve ser, abrangendo uma gama vasta." Não é o que pensam os membros da Academia, notoriamente conservadores. "Definitivamente, 'Waking Life' é um filme marginal, mas teve grande efeito sobre as pessoas, que me têm dado respostas emocionadas. O filme despoletou qualquer coisa, nunca se sabe o que pode acontecer."

Se "Waking Life" segue o seu percurso ao sabor dos caprichos, o mesmo acontece com os 30 animadores, os esquemas de cor e o vasto elenco de personagens secundárias. Linklater convocou uma série de amigos para participar, como Steven Soderbergh, um dos nomes do cinema independente americano que obteve mais sucesso em Hollywood do que Linklater mas que ainda aplica um saudável cinismo em filmes mais "mainstream".

"Ele estava na cidade a trabalhar num dos seus projectos e perguntou-me como estava a correr 'Waking Life'", lembra Linklater. "Estava a tentar descrever-lhe o filme e ele contou-me uma história sobre Billy Wilder e Louis Malle, que me pareceu apropriada e que poderia integrar uma cena de 'zapping' entre vários canais de televisão. Portanto, voltámos a encontrar-nos no dia seguinte e ele contou a história novamente, para a câmara. Achei divertido."

O realizador filmou depois Hawke e Delpy no seu próprio apartamento e cama - o que, admite, tem bastante significado. "Fui buscar personagens que tinha criado antes para estabelecer uma ligação com os meus outros filmes. Não quer dizer que se tenha de conhecê-los para que 'Waking Life' faça sentido. Julie e Ethan dizem coisas que já tinham dito em 'Antes do Amanhecer', é como se tivessem acabado de se reencontrar. Mas como, provavelmente, tudo se passa num outro nível de realidade, a dúvida fica no ar. É apenas o futuro que eu imaginei para eles."

Enfim, não supreende que, na passagem de "Waking Life" pelo Festival de Cinema de Londres no ano passado, um crítico britânico o tenha descrito como "uma viagem mental" ("a headtrip"). "Isso é bom", aquiesce Linklater, entusiasticamente. "Não há muitos 'headtrips' por aí. Estamos a viver numa era muito literal. As pessoas precisam de agitar mais as coisas."

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