Snoopy, Charlie Brown & Co. já têm museu nos EUA

Há muito mais do que poderíamos pensar no extenso legado que nos foi deixado por Charles M. Schulz, o homem que criou os Peanuts e que praticamente esquecemos até ao momento em que adoeceu, deixou de desenhar e morreu de cancro no cólon no curto espaço de três meses. Nessa altura, o cartoonista que conduziu discretamente o seu negócio na Califórnia durante décadas - desenhava as suas tiras dia sim, dia não, por mais de 50 anos - foi manchete nas notícias em todo o mundo. Foi como se a América se tivesse lembrado de repente de algo importante que tinha esquecido, de algo que afinal esteve sempre presente.

"Os Peanuts foram os primeiros (e ainda são os melhores) 'comics' pós-modernos de sempre", escreveu Garry Trudeau, o criador de Doonesbury, num artigo de opinião para o "Washington Post". "A maioria do público guarda-os no íntimo como uma parte maior da nossa cultura popular, enquanto os cartoonistas também os vêem como uma fonte insubstituível de intenção e orgulho, como o padrão a seguir por todos." O trauma de perder os Peanuts foi tão grande que jornais de todo o lado optaram por reeditar as pranchas de Schulz, indefinidamente.

Agora, existe um espaço que reuniu e preservou tudo o que Schulz deixou atrás de si, uma grande parte das cerca de 17 mil pranchas Peanuts que o criador desenhou ao longo da segunda metade do século XX, um monumento à sua dádiva e a esta espécie rara de dedicação à arte. O Museu e Centro de Investigação Charles M. Schulz, inaugurado no sábado em Santa Rosa, Califórnia, recorda oficialmente o homem e os seus indeléveis comparsas que criou ao longo de uma vida.

Contudo, se estão à espera de ver Snoopys gigantes a dançar e um consultório psiquiátrico interactivo com a Lucy, então esqueçam. Tal como o cartoonista, o museu também é discreto. É verdade que estão lá um labirinto com as formas do Snoopy, feito de salva e arbustos de alfazema, no jardim, e um divertido papagaio de papel colocado no cimo de uma figueira nas traseiras do museu, numa alusão à falta de sorte e resiliência de Charlie Brown.

Mas, de resto, o museu é um espaço elegante e arejado, integrado no bairro onde Schulz viveu e trabalhou até à sua morte, em Fevereiro de 2000. Está situado numa esquina que dista uns escassos 100 metros do estúdio do cartoonista, escondido entre uma auto-estrada e uma área arborizada, mesmo em frente ao ringue de patinagem no gelo em forma de chalé que Schulz construiu para Santa Rosa. Foi aqui que ele patinou e jogou hóquei mesmo quando contava já 70 anos, onde costumava tomar o pequeno-almoço ou o almoço ou ambas as coisas.

"Queria que isto se parecesse o mais possível com o que era o seu dia-a-dia - o campo de 'baseball', o ringue de gelo. Quanto aqui entramos, passamos a fazer parte da sua vida", diz a mulher de Schulz nos seus últimos 27 anos, Jean, enquanto encaminha um visitante pelo museu adentro, a poucos dias da sua inauguração.

Cá fora, uma equipa de trabalhadores coloca os últimos tijolos numa parede de ardósia preta que leva a assinatura "Schulz", a mesma que adornou cada uma das tiras Peanuts durante meio século. Outros juntam madeira clara para os corrimãos e outros ainda seguram uma parede onde se junta um amontoado de painéis de "cartoons" a carvão de Charles Schulz.

Um museu de oito milhões

Em 1995, Jean Schulz conseguiu finalmente convencer o seu marido, Sparky para os amigos, a construir um museu. Charles tinha resistido longamente à noção de promoção pessoal, mas, à medida em que as pranchas desenhadas à mão cresciam até proporções inimagináveis, "ele tomou consciência, e acabou por concordar, que seria simpático que as pessoas pudessem ver os originais", diz Jane.

E embora Charles Schulz não tivesse vivido tempo suficiente para assistir à grandiosa cerimónia de lançamento do projecto, em Junho de 2000, os seus desejos foram parte integrante do processo de "design" e construção do museu. Como, por exemplo, a exclusão de computadores. "O Sparky disse que não, não e não", diz Jean Schulz. "Havia coisas que tínhamos decidido à partida. O Sparky não tinha nada a ver com computadores. Eles são a última inovação, mas não fazem o estilo Sparky. Então, porquê utilizá-los?", interroga-se Jean. Para além disso, acrescenta, "queiramos ou não chamar-lhe arte, tudo o que aqui está é imaterial. O museu foca a sua arte, não o seu produto".

Os Schulzes financiaram o museu de oito milhões de dólares do seu próprio bolso mas, felizmente, o projecto não é nem um parque de diversões nem um santuário à vaidade do artista. A entrada curva em vidro é ladeada por enormes figurinos em ferro das personagens Peanuts, mas não existem muitas mais à volta. E apenas uma imagem de grandes dimensões do cartoonista alto de cabelo prateado está em evidência até chegarmos ao segundo andar do museu.

O verdadeiro espírito do lugar está sim resumido numa simples citação inscrita numa parede da galeria central: "Um cartoonista é alguém que tem de desenhar alguma coisa diferente todos os dias ao mesmo tempo que desenha a mesma coisa vezes sem conta - CMS"

Foi precisamente isto que Charles Schulz conseguiu fazer e, para prová-lo, o artista japonês (e admirador de longa data) Yoshiteru Otani criou um mural com 3588 reproduções em azulejo das tiras. Visto à distância, o painel forma a imagem de Lucy a segurar numa bola de futebol para Charlie Brown; visto de perto, é um testemunho deslumbrante da devoção de Schulz à sua arte.

Otani fez também uma espantosa escultura em madeira que reproduz de forma notável o desenvolvimento das várias encarnações de Snoopy ao longo do tempo, a começar por Spike, o animal de estimação que ocupou a infância de Schulz, até ao canino adorado, aventuroso, filósofo e hedonista que todos nós conhecemos.

Um pouco abaixo desta escultura está uma selecção de outras xilogravuras com várias outras personagens Peanuts, como a Marcie-caixa-de-óculos, com a legenda: "Alguns de nós pensam que ficamos giros de óculos". Também lá estão Rerun e Franklin: "Recebi seis cumprimentos hoje... e dois deles foram até sinceros".

Uma sala reservada para projecções vídeo está cheia de cadeiras em forma de feijão, onde os pais podem deixar as crianças inquietas a ver filmes Peanuts, mesmo em frente a uma galeria repleta de desenhos originais de Schulz.

"Queria assegurar que isto não seria um espaço de vaidade", diz o director do museu, Ruth Gardner Begell. "Não é um parque de diversões, não tem esse 'feeling', e mesmo assim ouvimos imensa risada nas galerias. Não precisamos de figuras Peanuts mecânicas para fazer rir e delirar as audiências Peanuts. Este é um lugar onde o trabalho vale por si mesmo".

Begell espera expor no museu o trabalho de outros cartoonistas, para além de ir rodando com a alguma frequência os painéis Peanuts aí patentes. Por agora, a primeira exposição temporária mostra o trabalho não de Schulz, mas dos seus amigos e colegas de profissão. Intitulada "Um Tributo a Charles Schulz", a exposição compreende uma série de pranchas feitas por cartoonistas nos meses em que Schulz adoeceu e se retirou de cena. Entre os colaboradores estão o conhecido cartoonista Mike Luckovich (a tira mostra Snoopy a jogar xadrez com uma bandeira a meia haste), Jules Feiffer ("Dança para Sparky") e toda a equipa de animadores dos "Simpsons".

Art Spiegelman, o criador de "Maus", a novela gráfica sobre o Holocausto, contribuiu com os originais da sua exegese de duas páginas sobre os méritos dos "Peanuts", publicada no "New Yorker" (onde conclui, como se sentisse frustrado: "Como é que os Peanuts retrataram de forma tão consistente a dor e perda genuínas ao mesmo tempo que mantinham tudo tão quente e animado?").

No segundo andar, o estúdio de Schulz foi recriado com cuidado o suficiente para provocar angústia a quem o conheceu: a sua famosa cadeira beije em pele, o estirador onde permanecia horas e horas até que surgisse uma ideia... Há também uma pequena réplica do avião de Red Baron Fokker e uma pintura abissal de zebras feita por um velho amigo da Art Instruction Inc., a escola de artes do Minnesota onde Schulz ensinou em tempos.

A sala seguinte passa em revista a sua vida: a infância em Minneapolis e St. Paul, a barbearia do seu pai, imagens dos anos no exército durante a II Guerra Mundial, uma parede onde se exibem os prémios de associações de cartoonistas, um Emmy, uma Medalha de Mérito atribuída pelo Congresso. Também há uma parede que Schulz decorou em tempos para a sua filha na casa de Colorado Springs, onde ele e a sua primeira mulher, Joyce Halverson, viveram um ano.

Jean Schulz também transferiu para o museu várias prateleiras cheias de "memorabilia" que antes pertenceram ao estúdio de muitos anos de Schulz. E, diz Jean, vê-las assim, num museu, não a põe triste. "Já chorei o suficiente. A verdade é que tenho mais sorte do que muitas viúvas, porque desta forma acabo por estar com ele. Continuo a sentir a sua presença aqui, como uma grande parte da minha vida", diz. "Sei que o Sparky gostaria dele. E isso é tudo o que importa".

Exclusivo PÚBLICO/"Washington Post"
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