O Amor à Espreita

O "bogeyman" - ou, na versão portuguesa de como-fazer-com-que-os-seus- filhos-lhe-obedeçam, o papão - para Jorge Cramez foi o cinema. Ele explica: "Quando tinha quatro anos, a minha mãe dizia: 'O menino, se não comer a sopa, não vai ao cinema no domingo.'" É certeiro - agitar seduções em vez de fantasmas - mas pode ser irrecuperável: a terceira curta-metragem de Cramez, "Venus Velvet", estreia hoje nas salas, em complemento a "Italiano para Principiantes".

É um filme sobre um amor-cometa, melhor: sobre um amor que dura o tempo de aproximação de um cometa. O melodrama está à espreita. "Gosto muito do género, Sirk e Stahl são os meus dois realizadores preferidos", admite o realizador, 39 anos. Autores descobertos nos tempos de intensa prospecção cinéfila. "Comecei a ir à Cinemateca cedo, ainda a Cinemateca era onde hoje é o Palácio Foz" - e foi-o até 1980. "'Leave her to heaven', do John M. Stahl é um dos f

ilmes da minha vida, e do Sirk são quase todos." Sinopse de um filme de Douglas Sirk: um soldado alemão e a filha de um preso político apaixonam-se durante os bombardeamentos de Berlim na II Guerra. Casam-se, ele volta para as trincheiras e morre, mas há uma árvore, outrora destruída, que volta a florir - milagre do amor para além da morte. É "Tempo para Amar e Tempo para Morrer" (1958).

Sinopse de "Venus Velvet": uma voz na rádio anuncia a aproximação do cometa Toutatis. Quando todos já abandonaram o bar Venus Velvet para se refugarem em abrigos, Leonel e Catarina estão entre os que decidiram ficar para trás: ela fica por ele, ele fica porque não quer saber. Vivem um amor fugaz, urgente. O cometa, afinal, passa ao largo da terra; o amor não fica - não há "milagre", esse elemento tão caro ao melodrama.

Ao tempo de Sirk, certamente, o cometa cairia e o Leonel e Catarina ficariam juntos até ao fim... "Happy end", apesar de tudo (e Sirk a dizer que não apreciava "happy ends"). Será "Venus Velvet" um filme sobre a impossibilidade do melodrama, hoje? "Não sei, acho que o Almodóvar contraria isso. Pelo menos, os seus últimos três filmes são grandes obras do melodrama", adianta Cramez.

Se "Venus Velvet" é "um filme sobre a impossibilidade dessa história de amor", é preciso explicar que não é completamente céptico: com Leonel e Catarina, estão Jorge e Marta, "o casal ideal", porque se amam, com ou sem bola de fogo.

É um filme com uma novíssima geração de actores: Ricardo Aibéo e Ana Brandão (Leonel e Catarina), Cláudio da Silva e Ana Moreira (Jorge e Marta). Mas as referências de Cramez parecem fazer parte de outro tempo, do melodrama à música: banda sonora com clássicos dos anos 50 e 60, de Paul Anka a Righteous Brothers, passando por Hervé Vilard. Por uma questão de validação histórica (houve, de facto, um cometa Toutatis que nos anos 50 passou de raspão pelo planeta, como Cramez descobriu numa revista da "American Science", especial cometas), mas não só. Doris Day ("Que sera sera") pontifica a colecção de vinis do realizador e todo o recheio da casa tem um ar "retro" - "os anos 50 foram muito engraçados".

Em todo o caso, "Venus Velvet" também já é uma história antiga. Começou por ser um argumento escrito para um exercício da Escola de Cinema, algures no princípio dos anos 90. "Mas, numa lógica académica muito perversa, não tinha notas para o filmar e foi outra pessoa que o fez." Valeu a pena insistir: o filme acaba de receber os prémios de melhor realizador e melhor fotografia no Festival Internacional de Curtas-Metragens de Vila do Conde. Cramez, que entretanto já trabalhou como assistente de realização em "Deux", de Werner Schroeter, prepara agora a primeira longa-metragem, "Amor Amores", adaptação de "La Place Royale" de Corneille. É "uma história de desencontros amorosos", para ser fiel às suas obsessões, mas onde, por fim, se desenha a hipótese do "milagre" - um nevão em Lisboa reunirá as pessoas mais "improváveis". Porque é que o cometa não chega a cair em "Venus Velvet"? "Os cometas não caem, o mundo não acaba assim. É só uma hipótese para construir uma história".

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