Infelicidades

Quando apareceu "Felicidade" não faltou quem asseverasse que Todd Solondz era a maior descoberta americana desde a pastilha elástica. O seu lado artesanal, o modo como parecia encarar a transgressão, a própria escolha da pedofilia como pedra-de-toque para apelar às cordas sensíveis do politicamente correcto, tudo contribuía para que o filme fizesse o pleno dos fazedores de opinião estético-sociológica. O fenómeno atingiu tais proporções que dizer que se tratava de um filme moralista e algo desonesto tinha direito a um olhar de viés e a tratamento de reaccionário.

No entanto, nesta coisa das modas, o tempo passa a correr, e o que era novidade depressa passou a "déjà vu": ou seja, "Conta-me Histórias", repetindo muitos dos tiques do filme anterior, fiel a uma fragmentação narrativa controlada, perdeu a graça do objecto "in" e dá de Solondz uma visão não embelezada pelos mitos do cineasta "transgressor". Resultado: muitos dos que embandeiraram em arco com "Felicidade" passaram do oitenta ao oito. Quer isto dizer que "Conta-me Histórias" é um mau filme? Não, tal como "Felicidade" não era uma obra-prima. Ambos se equivalem num registo de procura atabalhoada de alternativas a um discurso industrial exausto, em busca de renovações dos modos de contar. Ambos esbarram num simplismo redutor e numa fórmula que se esgota com inquietante previsibilidade.

A estrutura é transparente: dividir a ficção em duas partes desiguais, rotuladas por uma dicotomia reconhecível : Ficção e Não-Ficção. Matam-se dois coelhos de uma cajadada só. Invoca-se o cinema europeu, como convém em certos sectores, não apenas a piscadela de olho titular a "Fumar/Não Fumar" de Resnais, mas também a importância autoreferencial de um objecto narrativo, que se debruça sobre metanarratividades. É chique. Fica bem. Faz intelectual. Por outro lado, a componente "esperta" do filme faz reverter para categorizações de género, uma vez que, em inglês, "non-fiction" permite remeter para o documental, para uma zona de ninguém entre o romanesco e o o ensaístico.

Sobre este esquema, constroem-se duas histórias sãs e escorreitas e, por vezes até, fascinantes. Na primeira, um grupo de alunos confronta-se com as contradições de um mundo conformado à política correcta e às suas artimanhas: uma estudante que tem uma relação com um colega deficiente, acaba por entrar em jogos vagamente sado-masoquistas com o professor de escrita criativa de ambos, que é negro. O problema é que se dá (como já acontecia com "Felicidade") uma na ferradura e outra no cravo: tudo é exemplificativo e esquemático em demasia.

A segunda "história" possui contornos mais interessantes, sobretudo porque se apresenta, ainda que sem grande novidade, numa dupla dimensão: conta-se e interroga-se os modos de contar. Há até um interessante simulacro de "teoria do documentário", depressa sacrificado às leis da intervenção social. Ainda aqui, a obsessão com as mentalidades suburbanas, com a exposição do fracasso pessoal e da áurea mediocridade da sacrossanta família americana de classe média.

Quando Toby apresenta ao telefone, à antiga colega, a lista das suas infelicidades profissionais, percebe-se que a "solução" vai constituir a própria matéria da não-ficção - um documentário sobre adolescentes apáticos e famílias disfuncionais. Só o que não entrevemos é o fácil final infeliz, com a vingança da criada hispânica explorada e despedida. E no momento em que a "soap opera" entra pela ficção "séria" dentro, perguntamo-nos: que filme é este? Que infelicidade é esta? Que cinema independente é este?

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