Perdidos nas Trincheiras

Dois são guerrilheiros bósnios, o outro é um militar sérvio. Estão os três "entalados" numa trincheira. Podemos rir com o desespero deles? É cínico, desesperado e alegórico "Terra de Ninguém", filme de bósnio Danis Tanovic sobre o conflito na velha Jugoslávia. Quando o tecido social que caracterizava a região foi despedaçado. Quando as pessoas foram possuídas por uma embriaguez colectiva - e mortal. E quando se perderam numa terra de ninguém.

Na insólita situação que decorre numa trincheira abandonada perto de Tuzla, em plena guerra civil na Bósnia, está expresso todo o drama de um conflito brutal. O conflito pessoal entre um soldado muçulmano bósnio e um soldado sérvio bósnio simboliza o confronto sangrento que acabou por envolver vários povos em disputa por um escasso território. Simbólica ainda a situação de um militar muçulmano armadilhado por um sérvio bósnio - "Não acredito que isto me esteja a acontecer...." - que utilizou uma mina de salto e fragmentação fabricada por um país da União Europeia (UE). A Bósnia armadilhada, a população armadilhada por sofisticadas armas importadas por traficantes envolvidos em negócios obscenos. É assim "Terra de Ninguém", o filme do bósnio Danis Tanovic.

quem começou a guerra? Em meados de 1993 as linhas da frente do conflito estavam estabilizadas. Ao tirarem partido da sua superioridade militar, sobretudo em artilharia, as forças sérvias bósnias de Radovan Karadzic e do general Ratko Mladic controlavam 70 por cento do território. Para trás ficavam as grandes operações de "limpeza étnica" no Leste da ex-república jugoslava à custa das populações muçulmanas locais, onde participaram forças paramilitares vindas da vizinha Sérvia.

Foi ainda o ano em que se quebrou a primeira "aliança militar" entre muçulmanos e croatas bósnios, que entre a Primavera e o Inverno de 1993 promoveram massacres mútuos. Logo depois, e sob o patrocínio norte-americano, anunciaram a Federação Croato-Muçulmana e voltaram a dirigir em uníssono as suas armas contra os sérvios bósnios. Era o início da internacionalização do conflito.

As linhas da frente iam-se manter quase inalteráveis durante dois anos e meio, até ao Verão de 1995, quando começaram a ser desenhadas no terreno as linhas de demarcação territorial que acabariam por ser legitimadas no acordo de paz de Dayton, impulsionado e dirigido pelos EUA. Redesenhadas em Srebrenica, em Foca, à custa de milhares de vidas de muçulmanos, ou no Oeste da Bósnia, em detrimento das vidas de muitos sérvios.

Afinal, quem começou a guerra? Qual a função dos milhares de soldados da Força de Protecção da ONU (Unprofor/Forpronu), enviados para o terreno? Qual o desempenho dos repórteres credenciados? Qual o sentido deste conflito, onde os inimigos foram vizinhos, amigos, casavam entre si, e continuam a comunicar na mesma língua? Ciki, o muçulmano, e Nino, o sérvio, duas personagens de "Terra de Ninguém", têm memórias comuns. Conheceram a mesma rapariga de Banja Luka, antiga namorada do primeiro, e que "foi para o estrangeiro" quando a guerra começou.

No filme do bósnio Tanovic pergunta-se como foi possível chegar até ali. Uma pergunta que todos faziam. Confrontados com uma realidade desconhecida, os mais jovens tentavam assimilá-la à custa de argumentos básicos - que os convencessem a si próprios, que lhes dessem referências no pesadelo.

Recordamos o jovem jornalista sérvio bósnio no reduto de Pale, nos arredores de uma Sarajevo cercada pelas forças de Mladic. Lembrava-se dos seus antigos amigos muçulmanos, dos seus antigos professores muçulmanos, da sua antiga namorada muçulmana. Tudo perdido, destroçado. Impossível o regresso da convivência, da tolerância, dizia. Uma vida em ruínas. Como referia, quase orgulhosa, uma mulher ainda jovem que tinha fugido de Sarajevo para Pale: "Namorei com um muçulmano, mas após o início dos combates o meu irmão matou-o!"

Quem começou a guerra, como foi possível, quase sem reparar, que se chegasse ao limite? No filme aparecem as imagens de um Karadzic ameaçador, avisando sobre o possível "extermínio" dos muçulmanos, caso concretizassem os seus intentos, a aludir a uma situação semelhante à da Croácia independentista, onde a guerra já grassava. Eram os debates acesos no Parlamento antes do referendo sobre a independência, aprovado pelas populações croatas e muçulmanas, que decidiu separar a Bósnia da velha Jugoslávia. Estes povos disseram sim à secessão, os sérvios bósnios, 35 por cento dos 4,5 milhões de habitantes, boicotaram a consulta. Os "jugoslavos", um estatuto proveniente dos enraizados casamentos mistos nas urbes, deixaram de possuir uma referência identificadora. E foram dos que mais sofreram.

Os sérvios bósnios foram manipulados pelo medo. Queriam sentir segurança, manter os laços com Belgrado, permanecer numa Jugoslávia já condenada. Os presidentes da Croácia e da Sérvia, Franjo Tudjman e Slobodan Milosevic, tinham-se antes reunido em segredo, sugerido a divisão da república entre os seus dois países, recém-promovidos a pequenas potências regionais. O líder muçulmano, Alija Izetbegovic, acenava com a instauração de um Estado islâmico, a imposição da lei corânica, e convocava para as suas hostes guerreiras temíveis combatentes islamistas, argelinos, sauditas, afegãos... Sérvios ortodoxos, croatas católicos agitavam-se e pediam ajuda aos seus irmãos de sangue, e de religião.

As leis destinadas a proteger as novas minorias nacionais numa Bósnia independente simplesmente não existiam. Como não existiam na Croácia. Como tinham deixado de existir no Kosovo. Uma loucura em turbilhão, incontrolável, assassina, voltava a manchar de sangue as martirizadas terras balcânicas. Reféns do cinismo dos chefes muçulmanos bósnios de Sarajevo, da brutalidade dos líderes sérvios bósnios de Pale, do oportunismo dúplice dos responsáveis croatas bósnios de Mostar.

Neutrais? E depois o laxismo, ou a impotência dos "capacetes azuis" da Unprofor, que não conseguiram conter o conflito, que não evitaram o massacre de Srebrenica de Julho de 1995, uma das "zonas de segurança" da ONU, motivo da recente demissão do Governo holandês e do chefe de estado-maior das Forças Armadas. No fundo, a incompetência e o autismo da "comunidade internacional", que discutia planos de paz e declarações de cessar-fogo logo de imediato boicotados no terreno, e em diversas chancelarias.

Insistia-se na "imagem de imparcialidade" dos "soldados da paz", mesmo que muitos se apercebessem que "não se pode ser neutral perante homicídios". Mesmo que muitos tentassem sobrepor-se às divergências internas, às rivalidades e orgulho nacionais, ao ancestral despique entre franceses e ingleses, e alemães e holandeses. Denunciar situações, para quê? "Não vai alterar nada", dizia-se. As acções mais brilhantes tiveram de escapar à cadeia de comando, como sucedeu com o general francês Philippe Morillon, comandante da Unprofor na Bósnia, que em Março de 1993 avançou para a já cercada cidade de Srebrenica e exigiu a abertura de um "corredor humanitário". Pagará caro pela ousadia. No filme de Tanovic, o sargento francês Marchand, também de nacionalidade francesa, recorda Morillon.

E os jornalistas? Pressionados, perdidos, obcecados por histórias sensacionais, alvos a abater, alguns repudiados pelos protagonistas, muitos confrontados com a burocracia das "forças de paz", e todos envolvidos numa vasta teia que lhes tolhia os movimentos. Uma voragem estéril pela última novidade, num relacionamento de alta tensão. E a ligeireza com que alguns elegeram carrascos e vítimas, embora fossem acusados pelos autóctones de "ganharem dinheiro com a miséria [destes últimos]".

O escritor e embaixador Álvaro Guerra conheceu e aprendeu a amar uma Jugoslávia que não resistiu à ascensão dos nacionalismos radicais, conservadores, intolerantes. As suas "Crónicas Jugoslavas", como recordou o "Jornal de Letras" da primeira quinzena de Maio em artigo evocativo do seu recente e prematuro desaparecimento, começam assim: "A minha Jugoslávia não mudou de nome. Ao ver o corpo ensanguentado e esquartejado desse país, não me atrevo a alterar-lhe o título na galeria das minhas vivências. Não partilharei o estigma de assinalar a sua morte com um epitáfio que lhe renegue o seu nome." Álvaro Guerra refere-se a um lugar, como sublinha, "trucidado pelas rodas da história dirigidas por incontáveis equívocos e indizíveis perversidades".

É sobre estes equívocos, sobre um relacionamento impossível, sobre a nostalgia de uma velha Jugoslávia destruída sem apelo, sobre pessoas simples apanhadas num turbilhão, sobre a agressividade gratuita e sem sentido que fala o filme de Tanovic. Não é um libelo acusatório, antes um alerta contra qualquer espécie de violência.

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