A Metamorfose do Negro

Existem vários exemplos de interesse de realizadores portugueses pelas comunidades africanas em Lisboa (na ficção ou no documentário), embora muitos cineastas prefiram filmar os africanos no seu habitat natural, África. Mas o que distingue o filme de Inês de Medeiros, "O Fato Completo ou à Procura de Alberto", é, além de dar voz aos descendentes de imigrantes africanos, insistir, de forma inquietante, na questão da identidade. Como se confrontasse os jovens que acorreram ao "casting" do seu filme com a pergunta "quem são vocês?"

O pretexto para a revelação desses jovens é a participação num filme, que se intitularia "O Fato Completo", em que uma branca de Moçambique devia contracenar com um negro que tivesse nascido em Portugal (e que nunca estivesse estado em África). É, pois, uma descoberta colectiva de África que a autora e as suas personagens realizam. Por lá passa a África dos postais coloniais, das histórias contadas pela avó (e em muitos casos o desespero dos que nunca lá estiveram e se vêem forçados a inventar uma África com base em recordações alheias). Há, também, a busca dos africanos nas ruas, com planos indiscretos dos que se juntam na Baixa de Lisboa - e que a objectiva revela de forma quase voyeurista - ou do soldado negro à saída do cacilheiro.

Durante o "casting" - ou de acordo com as opções que condicionaram o resultado final -, dois grupos se impõem, quase como duas raças distintas: os afro-descendentes (os sem "raízes", a primeira geração de portugueses de origem africana nascida após 25 de Abril) e os africanos, que tendo nascido lá se subdividem em vários grupos, consoante as causas para a imigração, o tempo que levam em Portugal e o nível de integração. Entre estes dois grupos, são os africanos os que merecem menor condescendência por parte da maioria dos portugueses. Porque são africanos, e eles sabem o que é um africano. Porém, o outro grupo é uma categoria ainda não digerida. Como se lhes negassem o direito a serem portugueses.

Pelo vários "takes" do ensaio da única cena apresentada, um dos candidatos à Alberto pede à "velha senhora" (feita por Isabel de Castro) um fato completo. Aliás, um das razões evocadas por Alberto para tal pedido é querer "um fato para ninguém me fechar a porta à cara". Como se sabe, a barreira económica condiciona a discriminação racial - ainda que esta possa ser disfarçada por um fato de bom corte. É precisamente neste aspecto que é notável o exercício de Inês de Medeiros: ter percebido que procurar e seleccionar um actor para fazer de Alberto (um Marlon Brando versão africana, na voz da própria) anulava a necessidade da tal personagem. E como a realidade costuma ultrapassar a ficção, os dramas dos vários candidatos a Alberto são muito mais "verdadeiros" do que aquilo que se poderia escrever.

O fato é para Alberto a metáfora da metamorfose. E os rapazes do "casting", ao quererem apropriar-se da personagem, apropriam-se da metamorfose, usando o cinema, a oportunidade de aparecer ("tenho jeito, só preciso de alguém que me valorize", diz um deles) para alcançarem o que hoje parece mover qualquer pessoa desta idade e condição: fama e dinheiro.

Nessa cena final, em que se processa a metamorfose do candidato a Alberto, é como se o negro fosse também promovido a desempenhar no cinema português um papel que não é muitas vezes chamado a desempenhar. Já não estamos diante do famoso par "velha branca" e "criado", do cinema colonial, ou de inspiração colonial. Trata-se de uma cena de "engate", em que a promessa de comércio sexual - muito implícita - transcende não só a barreira etária, mas sobretudo a diferença racial.

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