Subitamente, no Verão Passado

Um casal parte de férias para a sua casa de praia no sul de França. Enquanto ela dormita na praia, ele desaparece. Afogou-se? Fugiu? Suicidou-se? Onde as histórias acabam, o filme começa: no vazio. E assim se estreia em Portugal um filme de um dos mais falados cineastas da actualidade, François Ozon.

Não é por acaso que, segundo a tradição, as "ghost stories" têm por cenário mansões isoladas: os fantasmas trabalham melhor no vazio. O que é que isto tem a ver com "Sob a Areia", que não é, de modo algum, uma "ghost story" (pelo menos na sua forma convencional)? É que a quarta longa-metragem do francês François Ozon também programa o seu assombro a partir do vazio. Mas os fantasmas (essa outra palavra para medo) são outros.

Um casal, Jean e Marie, parte de férias para a sua casa de praia no sul de França. São felizes? Aparentemente sim, tanto quanto nos é dado a ver pelo minimalismo dos gestos quotidianos, o dobrar do lençol que cobre o sofá, a refeição ("Só mais um bocadinho", pede ele), os minutos antes do sono. Mas, como dizem os franceses, "on ne sait jamais".

No dia seguinte, enquanto Marie (magnífica Charlotte Rampling) dormita na praia, o corpulento Jean (delicado Bruno Cremer) desaparece, sem ter pronunciado mais do que meia dúzia de monossílabos desde o genérico. Afogou-se? Fugiu? Suicidou-se? "On ne sait jamais." Nem Marie.

Desapareceu é a palavra justa, porque nada volta a aparecer, nem mesmo o corpo de Jean. Não se faz luto quando não há um morto para chorar. É, portanto, a ausência e não a morte (trata-se, efectivamente, de uma não-morte) que está no centro de "Sob a Areia", porventura com maior fatalidade porque não encerra nada, antes deixa atrás de si um rasto de intangível abandono. O mais notável no filme é, justamente, a forma como essa ausência se torna presente ou, por outro, como o intangível adquire um peso de chumbo.

As histórias complexas serão, afinal, as mais simples - veja-se o último filme de David Lynch, "Mulholland Drive" - e vice-versa? Seja como for, em ambos os casos estamos perante dois cineastas que deixam o campo aberto à interpretação. Ozon justifica: "Gosto muito de fazer trabalhar o espectador, e dizia a mim mesmo que não valia a pena dar demasiadas informações, preferia que ele se interrogasse, que colocasse as suas próprias perguntas, que construísse as suas hipóteses sobre o desaparecimento".

o vazio. Dito isto, é fácil resumir "Sob a Areia": um filme sobre uma mulher que se recusa a aceitar a morte do marido. Onde as histórias acabam, Ozon começa: no vazio. Ainda por cima, dá-lhe o tom certo, silencioso, minimal, sem nunca o abafar sob o um sentimentalismo excessivo. Se há algo que nos prepara para o desaparecimento de Jean - o seu silêncio, a contemplação do formigueiro por debaixo de um tronco -, esses indícios só se evidenciam depois do facto consumado, como se adquirissem o seu devido valor depois de nos escaparem. É justo que assim seja porque é esse o percurso de Marie, personagem que sustenta o filme por inteiro: alguém que tenta recompor o que perdeu em busca de respostas.

Numa das primeiras versões do argumento (de Ozon e Emmanuelle Bernheim), o desaparecimento de Jean era justificado pela descoberta de que levava uma vida dupla - "uma amante, problemas de dinheiro, uma criança escondida, etc... todo o género de coisas muito clássicas sobre a descoberta do outro com o qual vivemos sem o conhecer verdadeiramente". Nada disso resistiu e, no entanto, tudo é possível por hipótese - o filme limita-se a deixar antever a perturbação de Jean.

Luxo em tempos de abundância: numa altura em que as narrativas forjam riqueza dando de barato a acumulação de informação à velocidade de cruzeiro, "Sob a Areia" é um filme onde tudo está reduzido ao essencial, a uma espécie de limpidez que não tenta esgotar(-se) - não será, nesse sentido, clássico? Dito de outro modo, o filme continua dentro das nossas cabeças. Admirável economia narrativa, audaciosa contenção da "mise-en-scène", sobretudo depois do estilizado "Gouttes d'eau sur pierres brûlantes" (exibido na edição do Festival Gay e Lésbico de Lisboa de há dois anos), a anterior longa-metragem de François Ozon.

O que acontece, então, num filme que começa onde os outros acabam, que oferece, a abrir, a sua intensidade dramática, de que o resto da narrativa se torna refém? De regresso a Paris, Marie retoma a sua vida normal, janta com amigos, vai às compras, frequenta o ginásio, dá aulas de Literatura Inglesa na universidade (atenção: o que lê em voz alta é "As Ondas" de Virgina Woolf, esse livro sobre a inconstância do ser), toma o pequeno-almoço com o marido...

Sim, Jean reaparece, só para ela (e para nós). O mesmo Jean, corpóreo, apresentado dentro da mesma lógica representativa das personagens "reais", e simultaneamente outro, não o marido mas o cúmplice, visão fantasmática e idealizada. Não a assombração (o terror), mas o assombro (o espanto). Sem melodrama, antes com um tom algo provocatório, Ozon permite-se conceber uma pequena fantasia erótica entre Marie e dois homens, o fantasma de Jean e Vincent, o homem com quem inicia uma nova relação. O que começa por ser uma forma de iludir a perda, acaba por resultar na sua extraordinária evidência. A evidência do amor depois da perda ("Não chegas aos calcanhares dele", diz Marie ao amante). Também por isso, convém não perder "Sob a Areia".

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