Um homem é uma mulher é um homem

E Zeus criou a divisão dos sexos. Ainda faltavam uns quantos séculos para os "gender studies" aparecerem e já Aristófanes, poeta de comédia, como se sabe, se dispunha a falar com seriedade sobre Eros. Argumentava ele que em tempos mais remotos haveria uma espécie humana andrógina, meio homem meio mulher, que o irado Zeus cortou em dois, condenando-os a uma busca incessante da metade perdida.

O que os deuses separaram a golpes de raio, os palcos voltaram a juntar. Os palcos e os filmes feitos a partir deles. Não são só as coreografias que mudam radicalmente nos musicais dos anos 70; são também as identidades sexuais. "Boy meets girl", sim, mas eventualmente "boy meets boy": "Cabaret" (1972), de Bob Fosse, não é só o dilema de uma mulher, Sally (Liza Minnelli), dividida entre dois homens, é também o dilema de um deles (Michael York), atraído pelo outro. "The Rocky Horror Picture Show" (1975), de Jim Sharman, é um devaneio paródico em que um jovem casal vai parar ao castelo de um travesti louco onde se dá a convenção anual dos habitantes do planeta Transsexual. Já em 1982, Blake Edwards propõe em "Victor/ Victoria" uma releitura dos géneros, com Julie Andrews a travestir-se de homem que se travestia de mulher," a woman pretending to be a man pretending to be a woman". Mais recentemente, em 1994, "Priscilla, Rainha do Deserto", do australiano Stephan Elliot, vem assumir-se como corolário do "cross-dressing" e do "camp" no musical.

É nesta linhagem que se insere "Hedwig - A Origem do Amor", de John Cameron Mitchell. Começou por ser um número num clube "drag", passou a espectáculo no circuito off-off Broadway, e virou filme, agraciado com o prémio de melhor realizador e do público no Festival de Sundance.

O essencial estava definido no espectáculo: Hedwig era já a "internacionalmente ignorada estilista musical" que relatava em palco a sua atribulada existência desde a infância em Berlim Leste, ao mesmo tempo que oferecia um reportório rock - uma espécie de "stand-up musical comedy". Sim, já actuava com a sua banda, The Angry Inch, assim nomeada a partir do embaraçoso vestígio de virilidade que sobrara de uma operação de mudança de sexo mal sucedida. E, sim, John Cameron Mitchell - protagonista, co-argumentista e realizador - já tinha o seu Platão em dia. No discurso de Aristófanes em "O Banquete", a fúria dos deuses não se abate apenas sobre os andróginos: também as espécies masculina e feminina (duplamente masculina e duplamente feminina, entenda-se) se viram separadas e obrigadas a buscar eternamente as respectivas metades. "Hedwig - A Origem do Amor" é, portanto, a história de um homem em busca da sua metade - e que acaba por se reencontrar a si próprio.

Mas, para lá das reformulações que "Hedwig" sofreu na transição para o cinema - era, essencialmente, um "one-man show", o que levou a que as personagens à sua volta adquirissem maior relevo -, o filme conserva a sua marca de génese: espectáculo de palco. A cena na "roulotte", em que Hedwig assume a sua "persona", vem explicitar isso mesmo, com os "performers" a derrubarem uma das paredes para a transformarem em palco, e com um pequeno número de "karaoke". Mais do que qualquer outra coisa, "Hedwig" é um filme sobre o espectáculo "tout court" - não no sentido de Baz Luhrmann e do seu "Moulin Rouge" (que regressa às salas esta semana, reforçado pelas nomeações para os Óscares e por um segundo volume da banda sonora) de uma reconfiguração iconográfica do género musical, antes mantendo um carácter artesanal de "espectáculo filmado". Assim sendo, a sua força maior assentará na envolvência do público, na ilusão de o fazer acreditar que está a assistir a um espectáculo em palco.

Mitchell apelidou-o de "musical rock pós-punk neo-glam". A amálgama assenta-lhe bem, até porque se as referências são as do "glam rock" dos anos 70 - Bowie, Lou Reed, T-Rex - ouvidas com a cabeça dentro do forno, o que fica são apenas as roupas flamejantes e a ambiguidade sexual. Não estamos, como em "Velvet Goldmine" (1998), de Todd Haynes, perante uma obra que absorve a roupagem iconográfica de uma época. Mesmo que ambas encontrem referências primordiais como caução: Oscar Wilde em "Velvet Goldmine", Platão em "Hedwig". Nem mesmo o facto de se reportar ao Muro de Berlim servirá para muito mais do que metáfora da própria situação do protagonista.

Vagamente fassbinderiano, como em "No Ano das Treze Luas", trata-se de um homem que se torna mulher por amor. Há-de acabar caminhando sozinho, sem artifícios, sem máscaras, sob o céu da noite. Já não é Hedwig. É apenas alguém que recuperou a sua outra metade.

Sugerir correcção
Comentar