I.A. - Inteligência Artificial

Ninguém suspeitava, mas aconteceu. A crítica dividiu-se, o público nem por isso. As receitas de "A.I." no "box office" americano ficaram reduzidas a metade uma semana depois de uma estreia pouco auspiciosa. Até o septagenário Brian Aldiss, autor do conto de ficção científica que deu origem ao filme, veio em sua defesa: "A.I. é demasiado erudito (i.e., demasiado inteligente) para espectadores de cinema que preferem histórias simplistas.

"A.I." não é o primeiro "flop" de Spielberg. É, no entanto, o primeiro com maior êxito de crítica do que comercial. A culpa é de Kubrick, cujo fantasma (e não só) anda à solta em "A.I."? Ou de Spielberg, que habituou as suas audiências a "histórias simplistas", como refere Aldiss? Não importa. O mais provável é que os habituais admiradores de Spielberg não se reconheçam num projecto que tem Kubrick a espreitar por todos os lados. E vice-versa. E, no entanto - melhor dizendo: por isso mesmo -, "A.I" é o melhor filme de Steven Kubrick - perdão: de Steven Speilberg - desde há muito.

Alguém já disse que o título não podia ser mais perfeito: partido ao meio, pode-se dizer que junta a inteligência de Kubrick ao artifício de Spielberg. Ou será ao contrário? É pouco provável. É na cerebralidade e perversidade do primeiro que reside o melhor, é no sentimentalismo linear e no simplismo (desculpem a insistência) do segundo que perde força. Veja-se o final - desastroso - em que o pequeno David é descongelado dois mil anos mais tarde para um mundo em que a raça humana foi extinta e tudo o que resta são uns beneméritos ETs esguios e translúcidos, dispostos a conceder-lhe desejos qual génio da lâmpada de Aladino. "Queremos que sejas feliz. És muito importante para nós, és único", dizem-lhe.

É normal: o cinema de Spieberg está repleto de seres "únicos", meninos-prodígio à deriva por um mundo desafectado. Neste caso, é David, um menino-robô programado para amar. E, claro, para satisfazer um mercado potencial de casais sem filhos. Depois de uma verborreia pseudo-científica que faz temer o pior, o criador de David (William Hurt) conclui a sua leviandade demiúrgica: "Deus não criou Adão para o amar?" David é, então, criado e testado junto de um casal cujo filho natural foi congelado por causa de uma doença terminal. Mas é um robô e a sua estirpe tem-se multiplicado em figurações demoníacas no imaginário colectivo. David entra na nova casa - rosto de cera, sorriso aberto, olhos esbugalhados e fixos, passo ligeiro, sapatos aderentes: "Gosto do vosso soalho". É um dos melhores momentos do filme, que convoca a frieza e ambiguidade do universo de Kubrick - o pai adoptivo de David formula a pergunta que vai na cabeça de toda a gente: o amor do pequeno robô é verdadeiro, não será ele capaz do contrário?

Justamente, a partir daqui, tudo será uma questão de autenticidade: a tragédia de Édipo-rei (o amor de David pela mãe é obsessivo, quase incestuoso) dá lugar a Pinóquio. David só quer ser um "menino real". Parte em busca da fada azul e "A.I." muda de registo: entra-se numa odisseia perigosa - passando pela Feira da Carne, onde robôs são imolados para divertimento dos humanos - e "funky" com a aparição de Gigolo Joe (Jude Law), o andróide sexual que, apesar de Spielberg afirmar ser apenas uma figura "fugidia" na versão de Kubrick, jamais poderia ser uma invenção spielberguiana. Que, apesar disso, Spielberg consiga imprimir a sua marca pessoal é meritório (estão lá os seus "Encontros Imediatos" e "E.T.") . Pena que a de Kubrick seja inimitável.

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