Sonhos Digitais

Parece um filme para amantes de videojogos e pode passar despercebido aos cinéfilos em geral. As personagens têm movimentos que nos fazem mexer na cadeira com o desconforto. E, no entanto, fica aquele leve sentimento de se estar a assistir a "algo completamente diferente". É uma excelente oportunidade de verificar o actual estado do cinema feito com computadores e, nesse sentido, é um marco.

As questões sucedem-se: é um filme ou apenas uma sequência de efeitos especiais? É um conjunto alinhado de vídeos "full motion" (FMV), como os que normalmente introduzem a história de um videojogo, ou um amontoado de ideias coladas pela novidade tecnológica?

É um filme, e é um marco. É o primeiro filme de longa duração que traz para a tela actores aparentemente humanos, mas todos eles, mais alguns alienígenas, os cenários e as paisagens, criados e manipulados por um conjunto de computadores cujo consumo daria para "alimentar" muitas empresas em Portugal.

Os quase 200 humanos que trabalharam nesta obra estão invisíveis, a começar pelo realizador, Hironobu Sakaguchi, um desconhecido das lides cinematográficas mas conhecido no mundo dos videojogos pelos 10 títulos editados de "Final Fantasy".

Sakaguchi altera o argumento em cada jogo, o que ajuda a explicar a venda de mais de 30 milhões de cópias desde o lançamento inicial em 1987. O último, "Final Fantasy X", foi editado no Japão em Julho e deve chegar aos EUA e à Europa em 2002, antes do lançamento da versão XI como jogo multi-utilizador em rede.

Nesse sentido, o filme é mais uma história a somar às já existentes, sem a interactividade que vai ser acrescentada de forma limitada na edição especial em DVD, a ser preparada para a consola PlayStation 2. Entre outros bónus, será possível mover a câmara para ter diferentes ângulos de visão de uma mesma cena. O seu lançamento deve ocorrer até final do ano, enquanto se espera o videojogo-do-filme-do-videojogo em 2002.

Completamente diferente. "Final Fantasy", o filme, é inovador sob diferentes aspectos. Pela primeira vez numa adaptação cinematográfica de um videojogo, o produtor executivo dos jogos é igualmente realizador, produtor e responsável pela história fílmica. Sakaguchi explica que "sempre quis criar uma nova forma de entretenimento que fundisse a magia técnica dos jogos interactivos com os sensacionais efeitos especiais dos filmes". Com este filme, acredita ter dado "mais um passo para esse sonho".

É esta fusão entre dois mundos tecnológicos aparentemente diferentes que pode dividir as opiniões sobre o filme. De um lado, estão os amantes dos videojogos ou da imagética moderna japonesa, da "anime" aos pequenos filmes de síntese, que reconhecerão aqui muito mais a inconografia japonesa do que uma produção norte-americana. E quem o quiser classificar ou admirar em termos cinematográficos, pode ter uma decepção e assistir a pouco mais do que uma soma de estereótipos. A história é fraca, as personagens têm movimentos que nos fazem mexer na cadeira com o desconforto e até os alienígenas parecem retirados do "plateau" digital de "Starship Troopers". E, no entanto, fica aquele leve sentimento de se estar a assistir a "algo completamente diferente".

Começando pela história, a velha luta entre cientistas detentores do conhecimento e da racionalidade sobre o meio ambiental, que tentam defender de militares arrogantes iludidos pela força dos canhões atómicos. Neste processo antagónico, o grupo de elite "Deep Eyes" - uma fotocópia da equipa de "Aliens" - acaba a defender a investigadora Aki Ross, numa parábola ambiental retirada directamente da teoria de Gaia, formulada por James Lovelock e Lynn Margulis em 1972, que entende a Terra e os seres que a habitam como uma entidade viva única.

Quanto ao cenário, o ambiente negro inicial - como se fosse a cidade abandonada depois da realização de "Blade Runner" - dá lugar a cores mais quentes, entre a violência e o onírico, até se atingir o branco, a pureza final.

Mas é nas personagens que a atenção está focada e a curiosidade antropomórfica não deixa de nos salientar os erros técnicos: umas mãos de jovem que parecem reais e logo as do idoso, mais informáticas e rígidas, como muitos dos movimentos motores, faciais e corporais dos personagens em geral.

Para Sakaguchi, o mais importante foi terem conseguido criar personagens humanas geradas por computador. "É o sonho de qualquer artista da computação gráfica". Por enquanto, mantém-se como sonho, mas está cada vez mais próximo de ser concretizado fielmente.

Onde pára a ilusão. Não quer isto dizer que não houve esforço suficiente. Durante quatro anos, os estúdios da Square Pictures em Honolulu albergaram 200 técnicos dos EUA, Japão e Europa, alguns dos quais participantes em "Matrix", "Titanic", "Toy Story", "Total Recall" ou "Terminator 2". Tudo boa gente, portanto.

Alec Baldwin (como capitão Gray Edwards), Steve Buscemi (Neil), Donald Sutherland (Dr. Sid), Ving Rhames (Ryan) ou James Wood (General Hein) foram os actores escolhidos para dar voz às personagens virtuais.

A gravação dos diálogos foi depois usada durante a captação dos movimentos humanos ("motion capture"). Basicamente, uma pessoa executa os movimentos necessários para uma cena, usando um fato especial dotado de dezenas de pequenos reflectores - colocados estrategicamente nas articulações - que são captados por câmaras de filmar. Estas câmaras estão ligadas a computadores e o resultado é depois trabalhado pelos programadores informáticos, que transformam o esqueleto gráfico captado pelas câmaras num corpo com todas as suas especificidades. As roupas, os veículos ou os cenários são concebidos à parte.

A heroína Aki (voz de Ming-Na, repetindo a experiência de "Mulan", da Disney) foi a personagem mais trabalhosa. Só a sua cabeça conta com 60 mil cabelos, cada um com movimento autónomo, para o qual foi necessário desenvolver software específico.

A cena mais difícil foi a do beijo entre Aki e outra personagem, que demorou mais de um mês a concretizar. "Tecnicamente, as expressões faciais naturais num humano foram o aspecto mais difícil" de concretizar, explica Sakaguchi. "É um grande desafio simular os movimentos humanos, o cabelo e a roupa, porque os nossos olhos são naturalmente críticos relativamente aos movimentos humanos - vêmo-los diariamente". O realizador concede que não tentaram criar personagens foto-realistas mas salienta: "os nossos 'actores' estavam sempre dispostos a trabalhar a horas e a receber ordens".

Talvez, mas o que têm em flexibilidade de horários falta-lhes em profundidade psicológica. Se num jogo isso é obtido através de diferentes caminhos intermédios, num filme ou existe durante o tempo de exibição (é, ainda assim, o caso de Aki e, menos, do General Hein) ou deverá ter sido pré-apreendido, como sucede com a equipa-estereótipo: todos conseguimos imaginar o que é um esquadrão de elite numa Nova Iorque destruída em 2065...

Há ainda outros aspectos pouco trabalhados que sofrem a herança do videojogo. Por exemplo, os alienígenas têm formas eficazes de matar os humanos mas dispõem-se a levar com alguns tiros antes de o fazer. Também na busca dos oito "espíritos" do círculo redentor, apenas vemos os três últimos esforços e desconhece-se o que é procurado. Ora os objectivos são conseguidos através de um radar localizador que tem armazenada essa informação que é "desconhecida".

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