Ficheiros Secretos

Há pelo menos uma vantagem em não se ser um fanático de "Ficheiros Secretos", em nunca se ter visto na íntegra um episódio da série televisiva e em guardar uma reserva mais ou menos atenta, mas certamente distanciada, em relação ao culto planetário que a criação de Chris Carter atingiu: pode-se olhar para "Ficheiros Secretos", o filme, num estado de relativa virgindade e partir para ele de um ponto próximo do zero ? nunca se estará meramente a reconhecer mas a descobrir. Para além de, como plausivelmente acontecerá com os mais acérrimos espectadores da série, não se correrem riscos de achar que o filme é apenas um episódio "esticado". Vamos partir do princípio que os produtores acharam necessário justificar a passagem da televisão ao cinema, e que entre uma coisa que se desenvolve ao longo de dúzias de episódios e outra que ocupa meramente o tempo de uma longa-metragem tem que haver pelo menos uma diferença fundamental. E vamos supôr que, pensando assim, Chris Carter e a sua equipa procuraram condensar no filme não a diversidade de peripécias que anima a série mas o espírito que lhe subjaz. Aceitando que estas eram as regras do jogo, tentemos montar as peças do imenso "puzzle" que constitui o fenómeno "Ficheiros Secretos". A primeira e mais óbvia peça a saltar à vista é a que joga com a hábil articulação entre alguns medos "eternos" e outros mais "contemporâneos". O oculto, o paranormal, o desconhecido, sempre colheu no imaginário colectivo, e para mais estamos em época propícia a "tensões pré-milenares". Mas onde "Ficheiros Secretos" acerta na "mouche" é no relacionamento desse fascínio com algumas inquietações típicas do período pós-guerra fria: os inimigos tornaram-se invisíveis, podem brotar do nada (são na maior parte dos casos meras imagens televisivas com pouca definição) e suspeita-se que o mais poderoso e invisível de todos os inimigos é o que se esconde dentro das instituições ? basta lembrar a quantidade de filmes americanos recentes que explora o filão da ameaça institucional, esteja em causa o FBI, a CIA ou a Casa Branca. Em "Ficheiros Secretos" o inimigo, ou em termos mais gerais, o perigo, não é palpável e encontra-se disseminado um pouco por todo o lado ? e esse receio difuso encontra-se exposto com algum fulgor, nada negligenciável. Outro dado a ter em conta, porventura aquele que para o caso (estamos a falar do filme) é mais interessante, prende-se com a dupla de protagonistas, David Duchovny e Gillian Anderson. Parece inegável a existência de uma certa química do par, que passa de modo preponderante pela constante sublimação de tudo o que tenha a ver com uma atracção sexual mútua ? o "beijo interrompido" do filme é, aliás, um dos seus melhores momentos. E seja como for, o modo como "Ficheiros Secretos" trata a dupla tem mais a ver com alguns pares do "filme negro" do que com as habituais "duplas de polícias" que geraram quase um subgénero nos últimos anos. Mas os dois heróis de "Ficheiros Secretos" têm um ar surpreendentemente cansado, como se fossem arrastados no turbilhão narrativo apenas por dever: há neles um sofrimento (acentuado também pelos diálogos) que lhes confere um "pathos" misterioso, a milhas da convencionalidade "branca" dos heróis contemporâneos ? pormenor decisivo, o filme age como se a crónica desse obscuro sofrimento fosse tão ou mais importante do que a exploração dos intrincados detalhes narrativos. Pode-se, sobretudo por isto, ser um leigo em matéria de "Ficheiros Secretos" e achar que esta versão cinematográfica resultou num objecto verdadeiramente estimável.

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