Romance

Feminino / Masculino

"Romance" é um filme segundo um ponto de vista feminino, onde os homens são os estranhos, têm de aceitar ser varridos desse universo. Catherine Breillat é praticamente desconhecida do público português, e mesmo em França, seu país natal, não é exactamente de uma celebridade. Mas tem já uma obra razoavelmente extensa, construída desde os anos 60, e dividida entre a literatura (escreveu o primeiro romance aos 16 anos) e o cinema (um deles, "Sale comme un Ange", de 1991, foi já exibido na Cinemateca). Uma obra marginal, que nem a temática potencialmente "escabrosa" - filmes sobre mulheres, portanto, também sobre homens, onde o sexo é sempre ponto de (des)encontro cruamente retratado - tem funcionado para atrair mais atenções, servindo, antes pelo contrário, para sublinhar a sua marginalidade. "Romance" causou mais "frisson" - tanto que até se estreia em Portugal - em grande parte pela sua tangente ao porno, reforçada pela presença, entre os actores, de Rocco Siffredi, vedeta de alto coturnos nos meis do cinema pornográfico. Mas será que "Romance" é um filme pornográfico? O anátema já recaiu sobre o primeiro filme de Breillat, "Une Vraie Jeune Fille", dirigido em 1974 mas que só agora - depois da estreia de "Romance" - foi comercialmente distribuído em França, depois de durante anos ter estado disponível apenas em cassete, nas estantes porno dos clubes de vídeo. A resposta à pergunta inicial do parágrafo só pode ser uma: não, "Romance" não é um filme de género (pornográfico, erótico ou outro), é um filme (pelo menos em parte) sobre o sexo, que portanto o figura com uma crueza e um grau de explicitação nada habituais, e que se serve de alguns dispositivos do cinema porno para o contrastar e desmontar (a presença de Rocco Siffredi, como veremos à frente, é para isso fundamental). A partir daqui, a necessidade de justificar a presença de cenas de sexo faz tanto sentido como a necessidade de justificar cenas de acção num filme de acção - num caso como noutro, o essencial passa por elas. Os abismos do desejo Tudo começa, aliás, pelo "fim" do sexo. A "crise" da protagonista que põe o filme em movimento coincide com o momento em que o namorado deixa de querer fazer amor com ela, por aparentemente ter perdido o interesse sexual. É uma espécie de inversão dos dados de base de "Belle de Jour" (agora é ele que não quer), mas os seus efeitos vão ser acompanhados, tal como no filme de Buñuel (através da "charrette", explicitamente convocado para a onírica cena final), sobre o percurso da protagonista feminina. Que inicia assim uma descida aos abismos do desejo, passando do branco "celestial" (mas gelado) do apartamento que divide com o namorado ao vermelho "infernal" (mas surpreendentemente acolhedor) do "atelier" sado-masoquista do velho Robert. Viagem que é acompanhada, e conduzida, num estado de torpor, pela voz "off" da protagonista - voz "off" desamparada, quase sempre em ligeiro atraso em relação ao que as imagens mostram, e que se diria dividida entre a vontade de explicar (justificar) o que vemos e a incapacidade para explicar as suas motivações. Talvez esta encenação de um dos mais velhos conflitos da humanidade - o que opõe a "linguagem das palavras" à "linguagem do corpo" - seja, na sua fragilidade e no seu pudor, o que "Romance" tem de mais arriscado. Pudor, porque Marie (assim se chama a protagonista) não é uma libertina nem procura o prazer pelo prazer; o que ela procura no sexo é alguma coisa que o ultrapasse, um prazer que, passando pelo corpo, se desprenda dele e abra portanto caminho para algo próximo de uma redenção. Por isso é tão importante a cena porno com Rocco Siffredi. Porque começa por reunir os clichés da maior vulgaridade (engate num "snack bar" nocturno) e porque culmina com uma cena de sexo filmada como um desalmado acto mecânico, ou seja, como se pertencesse de facto a um filme porno: Rocco Siffredi, actor baço e reduzido ao papel de "pedaço de carne" ou de objecto masculino, "representa" como num porno, mas Breillat apaga tudo o que, num porno, estaria à volta dele (nem euforias nem êxtases hiperbolizados, apenas, no rosto e no corpo da protagonista, tristeza, apatia e vazio). Tudo ao contrário da sequência sado-masoquista, onde há lugar para o erro - mas um erro que faz "sentir" o corpo e interromper a perfeição mecânica do acto - e, em última análise, para uma vitória sobre a vergonha - vitória que soa a libertação ou, pelo menos, a reconciliação da protagonista com o seu corpo outrora desprezado. O último terço do filme, posto em marcha pela inesperada gravidez de Marie, é talvez o menso interessante. Pior desenvolvido, quebra a unidade hipnótica do tom que o filme mantivera até então, e faz-nos reparar mais em alguns clichés de índole feminista ou freudiana que, desde o princípio, o filme tivera agilidade para, pelo menos, contornar. O que não impede que a encenação da gravidez e o confronto da protagonista com um "outro" que está agora dentro do seu corpo culmine, na cena do parto, com um plano inacreditável, que faz a síntese deste capítulo ao mesmo tempo que processa um improbabilíssimo encontro entre Courbet e Cronenberg. Tudo isto dito, apetece acrescentar que, se é um disparate pensar que há filmes só para homens ou só para mulheres, "Romance" é diferente consoante o espectador seja homem ou mulher. É um filme que parte de uma mulher (falamos de Breillat mais que da protagonista) e que reorganiza o mundo (homens incluídos) segundo um ponto de vista feminino, onde eles próprios, por uma vez, são os estranhos - e aceitarem o risco de serem varridos desse universo. De qualquer modo, "Romance" merece tudo menos ser queimado no caldeirão do sensacionalismo.
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