Mulan

Desde há muito tempo que a aparição pontualmente, cada ano, no mês do Natal, de uma longa-metragem animada da Disney deixou de suscitar dúvidas quanto à eficácia do produto ou expectativas quanto à novidade da proposta. É verdade que às vezes os ajustes de agulhas levam as verdadeiras revoluções expressivas, mas o choque vitamínico iniciado em "A Pequena Sereia" e culminado em "A Bela e o Monstro" (agora também um mega-sucesso de cinco anos nos palcos da Broadway) esgotou-se em nova estabilidade de gestão dos recém-conquistados recursos: a animação computacional e a harmoniosa adaptação aos cânones do novo musical eram dados adquiridos, ninguém espere da máquina de fazer dinheiro da Disney a ilusão sequer da revolução permanente. Que restava, pois, aos gestores da animação mais popular do mundo para manter e alargar mercados, combatendo ao mesmo tempo a concorrência ? primeiro da Warner e depois da Fox (com o relativamente inesperado sucesso de "Anastasia")? Apostar em oscilações temáticas, que permitissem olhar para outros universos e, ao mesmo tempo, avançar na conquista de públicos diversificados. De uma perspectiva cultural eurocêntrica, caminhou-se para um suave desvio para as Mil e Uma Noites, de fácil integração, aliás: "Alladin" tocava em cordas reconhecíveis do imaginário ocidental e piscava o olho ao desenho animado japonês pela adopção de um traço característico dos nipónicos e por uma distorção mágica da figura do génio da lâmpada. O grande salto, porém, apareceu com "O Rei Leão" (mais um fenómeno de público, agora na sua versão teatral de musical da Broadway), a diversificar perspectivas e a alienar a figura humana da representação. Se nos clássicos do passado, a antropomorfização dos animais constituía valor adicional de adesão do público (havia o caso especial de "Robin Hood", em que conhecidas personagens lendárias apareciam travestidas de simbólicos bichos), agora tudo se deslocava para o reino animal e para uma tradição alheia ao cânone cultural do Ocidente. O multiculturalismo, politicamente correcto, entrava na lógica Disney pela porta grande e os resultados financeiros foram mais do que animadores. O mais extraordinário é que a tentativa seguinte de enveredar pelo imaginário nativo americano, com a história de "Pocahontas" não teve igual recepção, parcialmente porque o encadeamento narrativo falhava e porque uma banda sonora entediante e previsível evidenciava um retrocesso em relação à prestação de Elton John para "The Lion King". O regresso à grande tradição europeia com "O Corcunda de Notre Dame" (tentativa de capitalizar a nova voga de Victor Hugo, depois do inacreditável triunfo de "Les Miserables", o musical, no West End londrino, na Broadway e logo no mundo inteiro?), ou o parêntesis classicizante com "Hércules" e alguma renovação no tecido sonoro do acompanhamento musical, se recuperaram da perda de "Pocahontas", não terão afirmado o passo em frente que a ambição expansionista da Disney tinha em mente. Este é o pano de fundo para esta aventura pela mitologia chinesa visando muito claramente o mercado oriental, em concorrência directa com a produção niponica, mas com o olhar virado, sobretudo para a gigantesca massa populacional da República Popular da China, depois de todas as aberturas económicas e da integração da diversidade financeira de Hong Kong. Menos claramente um musical de tipo convencional, do que os seus predecessores, embora com o número suficiente de canções e de sequências coreográficas para não perder consistência nos mercados tradicionais, "Mullen" abre com o símbolo máximo da China Imperial, a Grande Muralha da China, põe em relevo a animosidade histórica com os seus vizinhos bárbaros e socorre-se, a nível iconográfico de um hábil "pastiche" das estampas orientais. Aliás, a única grande inovação estética deste veículo cuidadosamente conservador consiste no modo como metamorfoseia a paleta de cores dos desenhos clássicos, estendendo-a a matizes próximos do mundo conceptual chinês. A este nível assumem grande relevo, a despedida entre Mullen e o pai e o subsequente reencontro, no final do filme, com a animação do mundo vegetal a centralizar o olhar do espectador, mais próximo da abstracção de "Fantasia" do que das grandes ficções da produtora americana. Aqui reside, aliás, outra das curiosidades de "Mulan": do ponto de vista narrativo, o filme é dos mais lineares e despidos de peripécias paralelas, não obstante a necessidade de manter a emblemática presença dos animaizinhos tutelares, também em sintomática coexistência intercultural: o grilo da sorte (reminiscente de "Pinóquio") e o dragão chinês, reduzido à anedotização, típica da Disney, de lagarto amestrado. O lado heróico da história da mulher-guerreiro, convenientemente branqueado de excessivas conotações sexuais, tem ainda a vantagem de colocar no centro da acção uma figura feminina, afirmando as suas capacidades de igualar a "performance" do sexo oposto, regressando embora ao papel de objecto de conciliador casamento tradicional no epílogo, como convém a toda a ficção familiar que se preze. Assim ficam (quase) todos contentes. Malhas que a economia de mercado tece.
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