Helllooooo?!

Nova experiência sacrificial para Tom Hanks (o terceiro Óscar?): em "Cast Away - O Náufrago", o actor é um Robinson Crusoe moderno que converte uma bola de voleibol no seu Sexta-Feira. Porque é que Hanks atrai tamanhas provações? Provavelmente, porque não há nada de especial nele.

Em "Cast Away - O Náufrago", Tom Hanks interpreta (mais uma vez) o papel da sua carreira, assegurando a quinta nomeação para os Óscares (dada como certa num ano de produções amenas) e votando o resto do elenco a um "understatement" de quase-figurantes (Helen Hunt incluída), mas há uma personagem a que não se tem feito a devida justiça, apesar de ser ela que resgata grande parte do filme ao seu exasperante registo de contenção. Wilson é apenas uma inanimada bola de voleibol, mas é ela que, eventualmente, devolve a Chuck Noland (Hanks) o elo perdido da civilização e restabelece o diálogo (melhor dizendo, o monólogo) ao fim de uma hora de solitário silêncio numa ilha sem canibais nem erupções vulcânicas.

Já se sabe que "Cast Way" foi filmado em duas partes - a.E., isto é, antes do emagrecimento de Tom Hanks, e d.E., depois do emagrecimento - num período de 16 meses, com intervalo de um ano para o actor atingir a forma atlética de um surfista australiano, e que, pelo meio, Robert Zemeckis aproveitou para rodar "A Verdade Escondida". São objectos necessariamente diferentes: "A Verdade Escondida" era uma fantasmagoria construída com os mecanismos do suspense (ou vice-versa), "Cast Away" é um épico de pretensões metafísicas sobre um homem que, forçado ao isolamento, recupera o sentido profundo da vida.

E, no entanto, aquilo que, porventura, faz de "Cast Away" uma experiência bizarra na filmografia de Zemeckis - essa atitude contemplativa ao longo de mais uma hora, que corresponde à estadia na ilha, dispensando a narração em "off" ou banda sonora e com longos planos estáticos postos ao serviço dos instintos de sobrevivência de Chuck Noland -, já se pressentia em "A Verdade Escondida". Aí, era Michele Pfeiffer que estava só contra o mundo e a câmara limitava-se a reproduzir (nos espectadores) a consciência do seu medo, de tal forma que a primeira metade do filme fundamentava a suspeita (de Pfeiffer) de um crime que nunca tivera lugar.

Olhar sobre o vazio

Mas a estranheza de "Cast Away" parece evidente desde os primeiros minutos. O espectador que pouco mais conheça do filme do que o seu êxito de bilheteira nos EUA (estreado a 22 de Dezembro, é o segundo filme mais rentável do ano, a seguir a "The Grinch"), e a espantosa cura de emagrecimento de Hanks, julgará ter-se enganado de sala, tentando discernir a relação possível entre uma Praça Vermelha coberta de neve e esta revisão moderna de "Robinson Crusoe". Chuck Noland é um engenheiro de sistemas da FedEx, agência de despacho de encomendas expresso, a dar lições sobre a preciosidade do tempo em plena Moscovo e a separar pacotes com o túmulo de Lenine a seus pés. "Não vamos cometer o pecado de voltar as costas ao tempo", diz ele. É Natal e o "workaholic" inveterado está de volta a casa para um breve reencontro com a namorada (Helen Hunt), mas as imposições do tempo acabam por metê-lo de novo num avião de carga rumo a outro destino exótico, prometendo regressar pelo ano novo. O avião despenha-se sobre o Pacífico Sul e Chuck Noland é o único sobrevivente, enfrentando as ondas tempestuosas no modesto bote de borracha que o leva a uma ilha remota e que serve de pretexto (o único) a Zemeckis para explorar a espectacularidade visual do naufrágio graças aos efeitos de iluminação dos relâmpagos.

Tanto mais que contrasta com o surpreendente recato dos 75 minutos seguintes, recorrendo a uma iluminação de baixa tonalidade (que não desdenharia os adeptos do Dogma 95) e a travellings que cancelam a acção e traçam os limites da ilha. Ou Chuck Noland a olhar para o vazio.

Como é que se ilude esse vazio? Obviamente, o elemento psicológico e humano passa a primeiro plano. Com pouco mais do que um "pager" que mete água, um relógio de bolso avariado com a fotografia da namorada, cocos e meia-dúzia de encomendas dadas à costa (um par de patins de gelo, cassetes de vídeo e a redentora bola de voleibol), Noland converte-se num MacGyver primitivo e garante os meios básicos da sua sobrevivência - nenhum antropófago à vista... Mas, inevitavelmente, o equilíbrio emocional começa a ceder e o náufrago encontra solução para a sua desesperada condição humana na única encomenda que fica por abrir e que ostenta umas asas, na bola Wilson, transformada em ídolo primitivo, e na imagem da namorada. A esperança é compensadora: as asas acabam por "aterrar" na ilha e Chuck Noland regressa à civilização, com a perda irreparável do seu inseparável Sexta-Feira (Wilson) e o confronto com as mudanças (reparáveis) de quatro anos solitários. Sexta-Feira - perdão, Wilson - transformou-se, entretanto, na mais valiosa bola de voleibol do mundo. Foi vendida num leilão da Internet por 18.400 dólares (3860 contos).

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