Governo e militares em silêncio no caso da exposição a radiações no Kosovo

Foto
A exposição à radioactividade pode afectar não só os soldados que estão no Kosovo, mas os que já regressaram aos seus países de origem Srdjan Ilic/AP

O ministério da Defesa e o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA) mantiveram hoje o silêncio acerca de eventuais riscos de contaminação radioactiva dos militares portugueses no Kosovo, devido ao uso de munições de urânio empobrecido pela NATO naquele território, e do caso de um militar falecido em Março deste ano, depois de ter regressado de uma missão. O ministro Castro Caldas remeteu quaisquer explicações para o CEMGFA. Do gabinete do general Alvarenga, veio a informação de que iria ser emitido um comunicado, mas até ao momento nada foi avançado.

Soldados nunca foram informados do perigo que corriam

No entanto, um dos soldados que integrou a primeira missão portuguesa no Kosovo - entre 5 de Agosto de 1999 e 10 de Fevereiro deste ano -, Bruno Silva, afirmou ao PUBLICO.PT que apenas os sargentos de cada pelotão usavam dosímetros para medir os níveis de radiação e que os soldados nunca foram informados pela cadeia de comando dos riscos que podiam correr. "Nós não tínhamos esse aparelho, mas também nunca chegámos a saber os valores registados. Falávamos dos riscos entre nós, mas era tudo na brincadeira", conta Bruno Silva.O tenente-coronel Cruz Martins, do Estado Maior General das Forças Armadas, explicou que, "numa situação de guerra, todos os soldados têm pequenos aparelhos que lhes permitem controlar os níveis de radioactividade. Mas numa situação como a que se está a viver agora no Kosovo (uma missão de paz), apenas uma amostra faz testes que permitem detectar a radiação no ar e se os indivíduos estão a ser afectados".
Quanto a informar os soldados dos eventuais efeitos do urânio empobrecido, fonte militar explicou ao PUBLICO.PT ser natural que as informações fossem apenas concentradas nos comandos porque esse é o funcionamento normal da instituição militar de modo a assegurar a "coesão da unidade" e a "mobilização para o cumprimento da missão". No entanto, todos os militares foram avisados de uma série de procedimentos que teriam que respeitar e que foram impostos desde o início. Era proibido, por exemplo, aos militares parar em determinados itinerários, apanhar recordações ou comer qualquer coisa que não fosse oriunda de Portugal.

Missão do primeiro contingente revestida de perigo de contaminação

O trabalho do primeiro contingente implicou a limpeza do terreno, para permitir a montagem de infra-estruturas, e obrigou a escavações no local. Sendo Klina uma das regiões identificadas pela NATO como alvo de munições de urânio empobrecido, as operações levadas a cabo pelo primeiro contingente revestiam-se de um perigo acrescido de contaminação.

Causas da morte de soldado português por explicar

O pai do militar português que morreu em Fevereiro, três semanas depois de ter regressado do Kosovo, onde estava integrado no Agrupamento Bravo, da primeira missão do contingente, disse ao início desta tarde, no TVI Jornal, que ainda hoje não sabe a causa da morte do seu filho. Luís Paulino pediu pela primeira vez o relatório da autópsia em Maio, mas continua à espera.
Entre suspeitas de que o Exército português não tinha o equipamento necessário para enfrentar a situação encontrada no Kosovo, Luís Paulino está convicto de que a morte do seu filho resultou da exposição ao urânio empobrecido, afirmando que "se fosse outra causa já tinha sido informado".
Depois de ter regressado do Kosovo, em Fevereiro, o estado de saúde do militar português "começou a degradar-se, apresentando sinais de insuficiência renal". Mas os sintomas começaram a surgir ainda no Kosovo, através de "dores de cabeça e mal-estar".
Estes sintomas - náuseas, vómitos, dores de cabeça e febre -, segundo explicou ao PUBLICO.PT Manuel Abecassis, responsável pelo programa de transplantação de medula óssea do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, são indicadores de exposições prolongadas a doses muito elevadas de radiações. "Apesar de estes sintomas poderem corresponder a imensas situações clínicas, podem também ser provocados pela exposição a radiações. Se uma pessoa trabalha numa zona com níveis de radioactividade e apresenta estes sintomas, devem imediatamente ser tomadas precauções", disse Manuel Abecassis.
O responsável do IPO afirmou ainda que quando há exposição a níveis muito elevados de radiações, podem existir efeitos imediatos - "as pessoas morrem logo".
Quando a exposição a níveis baixos de radioactividade é prolongada, há efeitos tardios. "Nestes casos, há uma 'décalage' entre a exposição e o aparecimento de doenças oncológicas [cancros e leucemia]. Apesar de não existir um intervalo fixo, as alterações a nível da saúde começam dois a três anos depois", acrescentou Abecassis.
Esta opinião foi reforçada por Horácio Matos, físico de radioterapia do IPO, que afirmou que o perigo das radiações é a sua acumulação no organismo, mesmo que os níveis de radioactividade não sejam elevados. "Pode levar mais tempo, mas há sempre efeitos. Se não for nesta geração é na próxima, porque o ADN é atingido", afirmou Horácio Matos.
Manuel Abecassis explicou ainda que não há exames clínicos específicos para medir os efeitos das radiações no organismo. Podem sim ser feitos hemogramas regulares, para avaliar se há ou não uma diminuição de glóbulos brancos no sangue - outro dos sintomas da exposição a radioactividade.
De acordo com fonte militar, os exames médicos a que foi sujeito o soldado falecido em Março foram "inconclusivos", não sendo possível fazer qualquer ligação entre o urânio empobrecido e a causa da morte. Desde Agosto de 1999, já passaram pelo Kosovo mais de 900 militares portugueses.
A.M./M.F./H.P.
Os casos de Itália e Espanha

Depois da revelação do primeiro caso de morte por leucemia de um militar da missão italiana estacionada na Bósnia (onde a NATO utilizou o mesmo tipo de munições com que bombardeou o Kosovo), a contestação tem crescido entre os familiares dos soldados italianos e espanhóis. Hoje, o jornal italiano "La Repubblica" dava conta das exigências do Observatório para a Tutela do pessoal civil e militar das Forças Armadas, que solicitava o acesso imediato à ficha clínica e dados pessoais dos soldados estacionados no Kosovo.
Em Espanha, oficiais médicos do Exército iniciaram hoje uma série de contactos com os familiares dos militares para os informar que nos próximos dias vai fazer-se um reconhecimento médico massivo aos cerca de cinco mil soldados que já cumpriram missões no Kosovo.
Ver mais no Público de amanhã
Sugerir correcção
Comentar