Cordão sanitário no Grande Porto continua em cima da mesa

Directora-geral da Saúde desvendou o véu sobre uma eventual cerca sanitária à cidade do Porto, gerando uma chuva de protestos de vários autarcas do distrito.

Foto
Nelson Garrido

O Governo e as autoridades de saúde nacionais estão a ponderar avançar com um cordão sanitário que pode não se circunscrever apenas ao concelho do Porto. Entre as várias hipóteses em estudo está a criação de uma cerca sanitária que abarque pelo menos alguns municípios da Área Metropolitana do Porto (AMP). Os números justificam a preocupação das autoridades de saúde pública, uma vez que apenas seis concelhos do distrito (Porto, Vila Nova de Gaia, Maia, Matosinhos, Gondomar e Valongo) somam mais de um terço do total de casos confirmados de covid-19.

A decisão está a ser discutida entre a Direcção-Geral da Saúde, o Ministério da Saúde, o Ministério da Administração Interna e a Administração Regional de Saúde do Norte, apurou o PÚBLICO. São vários os cenários em cima da mesa relativamente à estratégia a seguir nos próximos dias, havendo quem defenda medidas confinadas à cidade do Porto e também quem proponha uma decisão mais ampla, que abarque outros concelhos da região.

A ponta do véu sobre estas medidas foi levantada esta segunda-feira pela directora-geral de Saúde, Graça Freitas, na conferência de imprensa de balanço diário da situação epidemiológica da infecção pelo novo coronavírus em Portugal.

Sobre o cordão sanitário em torno do Porto, Graça Freitas adiantou que “neste momento, e provavelmente hoje [ontem] será tomada uma decisão nesse sentido, a ser equacionada entre a autoridade de saúde regional e nacional e o Ministério da Saúde, obviamente”. “Essa articulação está estabelecida e vai até ser plasmada num despacho conjunto. É óbvio que a autoridade de saúde de nível dos ACES (agrupamentos de centros de saúde) se articula com os seus parceiros a nível daqueles municípios, desde logo a câmara municipal, a segurança social, ou seja  a comissão municipal de protecção civil. A nível local, esse circuito está perfeitamente definido”.

Este circuito será idêntico aquele que foi seguido no caso de Ovar. Foi através de um despacho conjunto do primeiro-ministro e do ministro da Administração Interna que foi concretizada a cerca sanitária de Ovar, através da declaração do estado de calamidade local

À mesma pergunta, no dia anterior, a ministra da Saúde respondeu de forma bem mais lacónica. “As medidas de saúde pública - e está aqui a autoridade nacional de saúde [apontou para Graça Freitas] - devem ser sempre proporcionais em função daquilo que são as circunstâncias. Essa ponderação é permanente, está a ser feita e naturalmente terá consequências”.

Bem menos esclarecedora foi a resposta do Ministério da Saúde que garantia, já ao início da noite de ontem, que “não tem neste momento qualquer proposta fundamentada sobre" a imposição de um eventual cordão sanitário em torno do Porto, o concelho com mais casos de infecção pelo novo coronavírus em Portugal, 941.

Questionado pelo PÚBLICO sobre o anúncio feito pela directora-geral da Saúde, o gabinete de Marta Temido remete para o artigo do decreto-lei que regulamenta o estado de emergência, o qual estipula que o membro do Governo responsável pela decisão de encerramento da circulação rodoviária e ferroviária, por razões de saúde pública, é o ministro da Administração Interna. O PÚBLICO também questionou o Ministério da Administração Interna sobre este assunto, não tendo obtido qualquer resposta.

Autarcas contra cerca

A declaração de Graça Freitas abriu uma guerra com os órgãos políticos da AMP. Ainda a Direcção-Geral da Saúde ponderava a cerca sanitária e já o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, bradava contra a eventual medida, ao mesmo tempo que questionava a “autoridade” de Graça Freitas para tomar essa decisão. A medida é “absurda” e ineficaz até porque “a situação epidemiológica nos concelhos limítrofes é em tudo igual”, disse Rui Moreira.

O autarca mostrou-se surpreendido pela “inopinada e extemporânea referência” da directora-geral da Saúde de que estaria a ser equacionada uma cerca sanitária ao Porto. A medida é “absurda”, ineficaz e baseia-se em estatísticas sem “fiabilidade”, insurgiu-se. E foi mais longe: “A Câmara do Porto deixa de reconhecer autoridade à senhora directora-geral da Saúde, entendendo as suas declarações de hoje [ontem] como um lapso seguramente provocado por cansaço”.​

Um cordão sanitário em torno do Porto seria uma medida “absurda num momento em que a epidemia de covid-19 se encontra generalizada na comunidade em toda a região e país”, criticou ainda a autarquia em comunicado. A medida “não foi pedida pela Câmara do Porto, não foi pedida pela Protecção Civil do Porto e não foi pedida pela Protecção Civil distrital. Nenhuma destas instituições e nenhum dos seus responsáveis, incluindo o presidente da Câmara do Porto, foi contactado, avisado ou consultado pela Direcção-Geral da Saúde”.

“Não fomos informados nem pela Direcção-Geral de Saúde, nem pelo Governo da intenção de avançar com um cordão sanitário no Porto”, corroborou um autarca, mostrando total surpresa pela medida que até à hora do fecho desta edição ainda não era conhecida.

O que a directora-geral da Saúde disse vai ao arrepio daquilo que defende o delegado regional de saúde que, no dia 22 de Março, quando foi activado o plano distrital de emergência para o Porto, defendeu que não se justificava uma cerca sanitária nesta altura devido à grande propagação do vírus em todo o distrito.

As câmaras municipais que formam um anel à volta do Porto (Vila Nova de Gaia, Gondomar, Maia, Valongo e Matosinhos) foram desafiadas a pronunciar-se. Vila Nova de Gaia, Gondomar e Matosinhos responderam e todas dizem que não se justificava o cordão sanitário.

A autarquia de Vila Nova de Gaia mostrou o seu desacordo relativamente à medida. “A Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia rejeita em absoluto esta solução e entende não ser a resposta adequada para a situação”, respondeu o gabinete de comunicação de Eduardo Vítor Rodrigues. 

Opinião idêntica tem Marco Martins. O presidente da Câmara de Gondomar e da Comissão Distrital de Protecção Civil do Porto considera que não se justifica uma cerca sanitária à volta do Porto “dado o estado avançado da propagação” do vírus. “Se a decisão tivesse sido tomadas há alguns dias talvez se justificasse, mas agora considero que não fará sentido porque já é tarde”, sustentou Marco Martins.

Antes disso, o presidente da Comissão Distrital de Protecção Civil do Porto tinha por três vezes solicitado à delegada regional de saúde que fossem implementadas cercas sanitárias em alguns dos concelhos com mais casos de covid-19, mas a proposta foi sempre rejeitada por aquela entidade entender que a medida não surtiria efeitos.

 “A decisão foi, obviamente, acatada. Não a ponho em causa, porque tecnicamente não consigo pronunciar-me”, disse Marco Martins, em declarações ao Jornal de Notícias, indicando, todavia, que tudo “está planeado e programado” caso venha a ser decidida a implementação das cercas.

A presidente da Câmara de Matosinhos não consegue encontrar justificação para a instauração de um cerco sanitário nos concelhos do Norte do país, “ainda para mais quando existe já contaminação comunitária, ou seja, não podemos dizer que existe um foco da doença”.

Luísa Salgueiro considera que as “situações que se verificam de falta de respeito pelas regas de isolamento social não têm que ver com a circulação de pessoas de fora do concelho. Proibir essa circulação não vai solucionar o problema”. “Em Matosinhos precisamos de cidadãos de outros concelhos para trabalhar, designadamente nos serviços de saúde e no apoio a dependentes. Não nos podemos esquecer que Matosinhos tem um dos hospitais de referência da zona Norte, cujo acesso pode estar comprometido com a possibilidade do cerco sanitário”, adverte a autarca num email enviado ao PÚBLICO, onde diz esperar que “estejam a ser equacionadas e ponderadas todas as implicações que podem resultar de uma media como esta”.

O presidente da Associação Comercial do Porto, Nuno Botelho, nem quer ouvir falar do assunto e avisa que avançar com um cordão sanitário em torno da cidade seria promover a “paralisação geral da região”. “Achamos que é um exagero avançar com essa medida. Não se justifica. Revela desconhecimento da situação no terreno”, disse à Lusa Nuno Botelho.

Sugerir correcção
Ler 10 comentários