O filme de terror do guarda-redes Hannes Halldórsson

A história improvável do titular das redes islandesas, que sonha com a longa-metragem da sua vida e pela hora de enfrentar a estrela global Cristiano Ronaldo.

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Halldórsson tem no cinema uma paixão maior do que aquela que sente pelo futebol ODD ANDERSEN/AFP

Encontrar na Islândia alguém que seja virtuoso em várias profissões ou artes, muitas vezes contrastantes, é quase natural. A limitação populacional (apenas 330 mil habitantes) contribui para esta pluridisciplinaridade. Um caso mais conhecido é o de Jón Gnarr Kristinsson, que presidiu a capital Reiquejavique, entre 2010 e 2014. Integrou uma banda punk, foi guionista, actor numa série televisiva e comediante, antes de formar um partido que pretendia satirizar os movimentos políticos tradicionais. Para sua própria surpresa, foi eleito para a autarquia. O futebol e a equipa nacional não passam, obviamente, ao lado deste fenómeno. Heimir Hallgrimsson, um dos dois seleccionadores em funções, é também dentista, enquanto Hannes Halldórsson, o guarda-redes titular, é um cineasta apaixonado e contou a sua peculiar história ao PÚBLICO.

Em 2012, Halldórsson, de 32 anos, defendia as redes do KR, o mais afamado clube islandês, localizado em Reiquejavique. Em simultâneo, dirigiu o vídeo de apresentação da música do país que concorreu ao Festival Eurovisão da Canção. Nada invulgar para um jogador que, até há bem pouco tempo, confessava, sem rodeios, que o seu trabalho, a tempo integral, era como cineasta. Uma actividade que, de resto, lhe rendia mais dinheiro que a bola. No seu país, são bem conhecidos alguns dos trabalhos que assinou, nomeadamente anúncios comerciais para marcas de cervejas, iogurte e até para uma companhia aérea, onde participaram jogadores da selecção islandesa, ele incluído.

No seu currículo constam ainda alguns documentários e um filme de comédia e acção, que começou a realizar em 1996, com apenas 12 anos. Nos últimos anos, tem trabalhado na primeira longa-metragem, que é o projecto cinematográfico da sua vida. Entretanto, teve um convite para jogar fora da Islândia e teve de fazer uma pausa na carreira audiovisual.

“Thriller” sobrenatural

“O meu sonho como realizador é fazer filmes, mas, neste momento, não é possível conciliar isso com o futebol. Quando terminar de jogar irei prosseguir a minha carreira como cineasta. Actualmente, estou a desenvolver um guião que, espero, venha a originar a minha primeira longa-metragem. É um thriller sobrenatural para o qual já trabalho há alguns anos”, explicou, sublinhando que este projecto não está a interferir com a sua vida desportiva.

“Estou agora a utilizar o meu tempo livre como futebolista profissional para acabar o script. Tenho esperança que esteja pronto para produzir quando terminar de jogar. Teremos de esperar para ver se o filme será feito ou não. Espero que sim!” O enredo parece saído de um livro de Stephen King, com muito suspense, fantasmas e horror, e desenrola-se numa zona remota da Islândia.

E o futebol no meio de tudo isto? Afinal, falamos do titular da baliza da Islândia, com 33 internacionalizações. A verdade é que Halldórsson passou grande parte da sua carreira ao serviço de clubes islandeses, numa liga pouco competitiva e semi-profissional. Tempo era coisa que não lhe faltava, no intervalo dos treinos e no longo defeso de Inverno. Mas as coisas mudaram recentemente. Após uma curta experiência pelo futebol norueguês e face às boas exibições ao serviço da Islândia, onde se estreou a 6 de Setembro de 2011, despertou atenções.

Em Julho do ano passado, o NEC da Holanda (10.º classificado na liga principal na última temporada) ofereceu-lhe um contrato por duas épocas, depois de ter ficado rendido à exibição deste gigante, de 1,93 metros, no triunfo, por 2-0, sobre a selecção “laranja”, em Reiquejavique, uns meses antes. A experiência começou da melhor maneira, mas uma longa lesão retirou-lhe a titularidade. Para estar em forma para o Euro 2016, acabou por optar por ser emprestado aos noruegueses do FK Bodo/Glimt.

Mas o futebol não é efectivamente o pano de fundo preferencial do universo Halldórsson. Se está completamente familiarizado com as estrelas de Hollywood, com os actores e realizadores, as vedetas do pontapé da bola não o impressionam particularmente. Durante um amigável disputado contra a Bélgica, em Bruxelas, em Novembro de 2014, na palestra antes da partida, confessou não conhecer grande parte das vedetas do adversário, com excepção do guarda-redes Thibaut Courtois e o médio/atacante Eden Hazard.

Lesões e obesidade

A própria carreira desportiva foi uma surpresa para Halldórsson. Gostava de jogar, mas um acidente a fazer snowboard, com apenas 14 anos, provocou-lhe uma deslocação no ombro. Considerado um guarda-redes promissor no seu país, a lesão parecia comprometer a sua evolução. E pior ficou quando, após a reabilitação, voltou a deslocar o mesmo ombro mais duas vezes, acabando por ser obrigado a uma complicada intervenção cirúrgica. As dores consumiram-no e deu por terminado o seu percurso no futebol, optando por dedicar-se totalmente ao cinema.

Paralelamente foi perdendo a forma física. Tinha 105 quilos quando um amigo o convidou para treinar como guarda-redes suplente numa pequena equipa islandesa da terceira divisão. Sem a agilidade de outros tempos, ficou impressionado com uma foto que lhe tiraram nessa altura, onde era particularmente visível a sua obesidade. Foi um ponto de viragem. Passou a ir ao ginásio diariamente, perdeu peso e conseguiu ultrapassar definitivamente o problema no ombro. Os resultados surgiram pouco tempo depois. Progressivamente transitou da terceira para a segunda divisão e, depois, para a primeira, onde ganhou um campeonato e uma taça da Islândia, em 2011, sendo eleito o melhor jogador da temporada.

A selecção veio logo a seguir, um mês depois da Islândia ter disputado uma partida com Portugal, na qualificação para o Euro 2012 (7 de Outubro de 2011). Foi derrotada, no Estádio do Dragão, por 5-3, com quatro dos golos nacionais a serem apontados por jogadores que integram o plantel de Fernando Santos em França: Nani (2), Eliseu e João Moutinho.

Travar Ronaldo

Halldórsson está agora totalmente concentrado no sonho do Euro 2016. A Islândia está empenhada em ser uma das sensações do torneio, o que daria ao seu guarda-redes o script mais espectacular da sua carreira na sétima arte. Pela frente terá uma tarefa ciclópica: impedir que a estrela global Cristiano Ronaldo estrague a festa da estreia.

“Será seguramente difícil travar Ronaldo. Ele é um dos melhores futebolistas de sempre e enfrentá-lo será um grande desafio. Espero que sejamos capazes de o parar, assim como aos seus colegas de equipa. Teremos de defender bem, como equipa, mas se algo falhar em termos colectivos, estarei pronto e farei o meu melhor para manter a bola fora das redes”, garantiu, antes de sublinhar que está ansioso pela partida desta terça-feira.

“Penso que é bom para nós enfrentar Portugal no jogo de abertura. Será a primeira vez que a Islândia joga num grande torneio e todos estaremos bem preparados quando o jogo começar.” Um pouco antes desta conversa, numa das balizas do Complexo Desportivo de Albigny, em Annecy, nos Alpes franceses, Halldórsson era um exemplo de empenho e concentração. O filme da eurosaga islandesa em França estreia dentro de instantes.

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