A origem da espécie

Diego Fernández Pujol faz o anódino parecer extraordinário, confere ao vulgar uma aura de experiência quase religiosa

Um road movie uruguaio, que percorre a estrada entre Montevideu e a região (o dito “Rincón”) que Darwin visitou no princípio do século XIX. As alusões a Darwin, e as leituras, em off e em inglês, de alguns textos seus, que o filme usa como pontuação, instilam nesta corriqueira aventura rodoviária um obscuro (e irrisório) sentido “civilizacional”, um discurso sobre o “homo sul-americanus” (invenção nossa, antes que refilem que isto vem na Wikipédia) visto como criatura exótica, usado para temperar o filme com uma misteriosa ironia melancólica e crepuscular, que nos põe a pensar em Rincón de Darwin como um cruzamento entre certos filmes mexicanos de Buñuel e um certo e determinado episódio do Seinfeld.

 

São três homens que se põem a caminho do longínquo (à escala uruguaia) Rincón de Darwin. O proprietário, por herança recebida do avô, de uma casa ali situada; o notário que vai com ele para fazer uma avaliação da propriedade; e o motorista da carrinha em que viajam, que fortuitamente (trabalha em mudanças) se vê encarregue de conduzir os outros dois. Fernández Pujol, com os processos mais simples (planos da estrada, planos dentro do carro, curtas cenas nas paragens), consegue imprimir um assinalável sentido da duração: o espectador sente o tempo que aquela viagem demora, acompanha o cansaço e a exasperação das personagens, e isto, apesar de tudo, não é coisa de pouca monta se pensarmos que o filme é curto, nem chega a hora e meia. O minimalismo narrativo é rico em detalhes: não se passa nada de espectacular, mas os desentendimentos e as aproximações entre os três, os gags com os telemóveis e os iPhones, os furos e as avarias da carripana - tudo isto “enche” o filme, removendo-lhe a aridez que a simples leitura da sinopse parecia prometer.

E essa acumulação de pequenos percalços e micro-acontecimentos vai atribuindo um alcance quase “épico” à viagem, como se fosse o longo caminho para um sítio mítico onde qualquer coisa de extraordinário pode acontecer, incluindo (é aqui que o filme ecoa algum Buñuel) a desagregação do verniz civilizacional, uma espécie de desnudar das personagens - que acontece, de facto, à escala “micro” de todo o filme, quando os telemóveis de todos ficam sem bateria e não há como voltar a carregá-las. Como quem não quer a coisa, Fernández Pujol filma uma “purificação” das personagens, um reencontro de cada uma consigo própria, uma espécie de paz que vem suceder ao pico da exasperação e do cansaço. Uma maneira de fazer o anódino parecer extraordinário, de conferir ao vulgar uma aura de experiência quase religiosa, sem nunca trair o tom menor, a ironia de semblante grave, ou a gravidade de semblante irónico, que é o mote do filme. Mais do que recomendável.

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