Um homem e o seu milhão de dólares

O melhor filme de Alexander Payne.

Já no filme anterior de Payne, Os Descendentes, ressaltava uma costela folk, um olhar sobre costumes, sobre tradições, musicais e culturais, de uma América pouco filmada (e o Hawaii, cenário desse filme, para pouco mais serviu, historicamente, do que para os filmes com Elvis ou com Pearl Harbor). Essa América ignorada, rural, antiga e meio arruinada, é o centro de Nebraska, filme cuja acção se passa entre Billings, Montana e Lincoln, Nebraska. É a história de Woody Grant, velho despassarado que confunde uma artimanha publicitária que lhe chega pelo correio com um vale de um milhão de dólares, a levantar numa morada de Lincoln. Despassarado mas obstinado, põe-se ao caminho, primeiro a pé, sozinho, e depois conduzido pelo filho, condescendente com a fantasia do pai.


Woody Grant é Bruce Dern, e o filme também é para ele, que há muito não tinha um filme à sua medida. Temo-lo visto aqui e ali como secundário, mas os mais antigos recordar-se-ão dele como um actor de outras décadas, os 1960s e os 1970s, que fez a ponte entre a “velha” Hollywood (Kazan, Hitchcock) e a “nova” (Bob Rafelson, Pollack, e talvez mais memoravelmente Hal Ashby, como protagonista de Coming Home, em 1978). Dern é genial na personagem, em mistura de fragilidade e teimosia, uma decadência física e mental expressas numa altivez, ao mesmo tempo muito estóica e muito desamparada.

Dern, e o seu Woody Grant, são a pedra angular do filme, mas a galeria de personagens e actores - onde pontificam outros “velhos”, como a impagável June Squibb (a sra Grant), Stacy Keach ou Rance Howard - é um atributo fortíssimo de Nebraska, tanto mais que a construção narrativa do filme, e o desenho do retrato de Woody, se faz a partir do olhar dessas personagens sobre o protagonista, a maneira como o vêem.Woody Grant representa uma América desiludida mas ainda não desistente, que ainda acredita num vale de um milhão de dólares desde que se faça algo por isso - neste caso uma viagem de umas largas centenas de quilómetros. Mas o que Payne quer é jogar essa personagem contra um fundo imobilizado no tempo, uma América rural depauperada e estagnada, como um grande deserto. Há um ar de “fim de um tempo”, que tem algo a ver com a atmosfera de small town sem horizonte que se respirava no Last Picture Show de Bogdanovich (filme que Payne pediu aos seus actores para verem).

Não há em Nebraska sombra da cinefilia de Bogdanovich, mas há uma enorme doçura, vagamente desesperada, sobre uma comunidade condenada à inacção, velhos operários e cowboys sem nada para fazer a não ser emborcar cervejas na taberna local, trocar trivialidades sobre automóveis, ou ficarem mudos e especados frente ao futebol na TV. Uma doçura que não exclui a ironia, mas uma ironia que nunca se volta contra as personagens, e que nunca é sobranceira - como seria num filme dos Coen, a quem este argumento teria caído que nem ginjas e felizmente não caiu.

O preto e branco que Payne escolheu, se nem sempre escapa a um certo decorativismo de “portfólio” fotográfico, faz sentido também por isso: o que ele filma é uma América aonde a cor não chegou, ou entretanto se esbateu. E, se seria exagerado dizer que é um filme “paisagístico”, a paisagem, os instantâneos da paisagem funcionam como mais do que mera pontuação: porque seja uma planície, um celeiro ou a fachada de uma loja, o seu papel não se reduz ao fabrico de um “ambiente”, é como um “inventário” perfeitamente incorporado na orgânica do filme. O que é também a razão de Nebraska ser o melhor filme de Payne: pela primeira vez temos a sensação de que ele não se limita a “escrever” sobre um cenário, mas a “escrever” com um cenário.

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