Aquele Querido Agosto de 1979

Revisitação de um planeta extinto, num filme que é também álbum de família do cinema francês

Julie Delpy é fatalmente mais conhecida pela sua carreira americana, sobretudo o par de filmes com Richard Linklater (Antes do Amanhecer e Antes do Anoitecer) do que por outra coisa qualquer. Mas ela não começou aí nem veio daí: nos anos 80, muito novinha, foi actriz de Godard (esteve no Detective, voltou no King Lear, e até entrou nalgumas das poucas cenas com actores das Histoire(s) du Cinéma), e também frequentou Carax (Má Raça). Respeito, portanto. O Verão do Skylab, se as contas não nos falham a quarta longa-metragem que Delpy realiza, tem a ver com isso: com as origens e o respeito que elas merecem.


Os mais novos talvez não saibam porque nunca mais se falou disto, mas no Verão de 79 não se falava doutra coisa. O Skylab ia cair e temíamos - crianças e adultos igualmente - que o fizesse em cima das nossas cabeças. Durante um Verão, ingenuamente, o Skylab cumpriu o papel de motor das fantasias de extermínio global que agora, tempos mais sofisticados, se reservam aos vírus e aos terroristas. Ao chamar o Skylab para o título do filme, Delpy (que nasceu em 1969) aponta ao reconhecimento geracional mas também à “época”, esse final dos anos 70 que agora já nos parece, de facto, outro planeta. Isso está no filme (nas músicas do filme, na televisão do filme, nas festas do filme), como um museuzinho da infância da geração que nasceu em 70, e está conseguido. Nesse museuzinho adivinhamos a autobiografia, e no recorte da pequena Titine (a personagem infantil que mais se autonomiza) reconhecemos eventualmente a própria Delpy, filha única do único casal de “esquerdistas” e “intelectuais” presentes numa reunião familiar algures numa costa francesa (Delpy interpreta a mãe da miúda, reforçando a identificação). Durante um fim-de-semana preenchido com churrascos, futeboladas, praia e discoteca, as crianças testemunham o mundo dos adultos e as suas intermináveis discussões. Políticas, sobretudo: há os dois “esquerdistas”, mas o resto é um mar de ressentimento “direitista”, entre os que foram corridos da Argélia e os que foram corridos da Indochina. As divisões são ferozes, mas Delpy envolve o olhar sobre todos no mesmo abraço, como se - com um certo perfume renoiriano - compreendesse as razões de todos, e se pudesse comover com todos. Nem sombra de maniqueísmo, como se a “origem” fosse também aquela divisão. E a oposição entre aquela espécie de comunhão na divergência, ainda que tosca e desajeitada, e os segmentos contemporâneos que abrem e fecham o filme, onde tudo parece desagradável, frio, excessivamente ordenado, numa palavra, “moderno”.

Esta inteligência na caracterização é a força do filme, muito bem acompanhada pela maneira como os actores existem e fazem as personagens existir, numa estrutura narrativa que, no fundo, é uma sucessão de cenas de conjunto resolvidas como conversation pieces. A célebre escola naturalista francesa, de morte mil vezes anunciada mas ainda capaz de se reiterar com algum vigor. Inteligência e justeza não fazem uma obra-prima, mas dão um filme que se veja. Mesmo que talvez não totalmente à altura das suas entrelinhas: é que as duas avós, as matriarcas, são interpretadas por Bernadette Lafont (musa de Truffaut, de Eustache...) e por Emmanuelle Riva (a do Hiroshima de Resnais). A “margem direita” e a “margem esquerda” da Nouvelle Vague reunidas como origem familiar: Delpy sabe o que quer dizer, de facto, saber se o filme corresponde à reivindicação seria toda uma outra conversa.

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