Morte na prisão

Sempre que estamos dentro do espaço claustrofóbico do motim, entre as paredes compactas do bloco prisional, sentimos uma fortíssima tensão dramática, uma irrespirável vibração de cinema

O "filme de prisão" constituiu um género em si, com pergaminhos garantidos nos idos de 30, na Warner Bros, e tem ocasionalmente revisitas contemporâneas, de que "Shawshank Redemption" (1994) será porventura a mais visível e significativa. Não se espere, porém, deste poderoso "thriller" espanhol, premiado com uma chuva de Goyas (o correspondente ao Óscar no país vizinho), nada que se pareça com os veículos pensados para Paul Muni ou George Raft.


Com efeito, "Cela 211", de Daniel Monzón, tem outras configurações, embora mantenha uma das características essenciais do género: a denúncia de um sistema judicial injusto, que leva a uma revolta sangrenta de consequências (im)previsíveis.A traços largos, a ficção constrói-se em torno de um grupo de presos de direito comum, que toma de assalto um bloco prisional, numa cidade de província, Zamora, usando como reféns, para alcançar a satisfação do seu caderno de reivindicações (melhores condições de tratamento, fim da violência policial indiscriminada e do impiedoso isolamento), três presos políticos da ETA, cuja morte poderá causar fortes embaraços políticos ao Estado.

A novidade narrativa passa, logo no início do filme, pela junção circunstancial ao bando de amotinados de um guarda prisional, Juan Oliver (um vulnerável e rigoroso Alberto Ammann, a contrastar com a fúria animal dos rostos que o rodeiam), no seu primeiro dia de serviço, abandonado com feridas ligeiras, por via de um acidente, numa das celas, a 211 do título, durante a fuga precipitada dos colegas. Este facto, só por si, adiciona à acção uma extrema complexidade: assistimos à evolução da personagem do guarda, de uma simples estratégia de sobrevivência (eliminando indícios incriminatórios da sua posição - o cinto, os atilhos dos sapatos, a aliança que fica como "insert" solto no epílogo), fazendo-se passar por um dos encarcerados, a cúmplice assumido do chefe dos revoltosos, Malamadre (um excelente Luis Tosar, a emprestar à personagem uma contida ferocidade), por entender as contradições do sistema e para vingar a morte da mulher grávida, vítima, precisamente, da brutal violência policial, quando se encontrava no exterior da prisão, entre os manifestantes que pretendiam saber novas dos familiares.

Onde "Cela 211" atinge os seus momentos culminantes é no espectáculo exposto do imenso caos visual que a câmara capta com a urgência de uma reportagem, não poupando efeitos (vertiginosos picados e contrapicados, "travellings" inteligentemente concatenados com planos longos de conjunto, a darem conta da dinâmica do grupo), mas nunca fazendo deles um fim em si. Onde o filme perde alguma força é na ocorrência, por vezes aleatória, de "flash-backs" de cenas íntimas de família, que cortam o crescendo da acção, ou na explicativa estrutura que preside à organização da narrativa, abrindo-a e fechando-a: um narrador que parece responder a um inquérito ou às perguntas de um espectador alegorizado no olhar directo para a câmara. Sempre que estamos dentro do espaço claustrofóbico do motim, entre as paredes compactas do bloco prisional, sentimos uma fortíssima tensão dramática, um soco no estômago, uma irrespirável vibração de cinema em estado de choque; sempre que se abandona esse microcosmos, quer nos referidos "flash-backs", quer nos planos intercalados da direcção da prisão, ou na deambulação de mulher de Juan pelo mercado, existe uma fragmentação que corta o fluxo narrativo principal e minimiza o conflito interno das personagens.

Poderá argumentar-se que a função de tais sequências intervalares passa pela necessidade de conferir maior densidade à transformação do protagonista (se é que existe um protagonista individual), Juan, de guardião da ordem a animalesco e sanguinário vingador. No entanto, do ponto de vista da lógica do filme como "huis-clos" perde-se unidade e dispersa-se o olhar, o que é pena.

No cômputo geral, trata-se, todavia, de um filme inteligente, com um ritmo alucinante e com a noção clara dos seus limites e objectivos: não se elide a dimensão política global da intervenção, mas privilegia-se a análise dos comportamentos sob a pressão dos factos crus e violentos. A morte aparece assim como resultado lógico de um desafio à ordem instituída, figurada, inclusive, nos belíssimos planos das inscrições incisas na parede da cela, história subliminar de um sistema judicial infame e criminoso. A ver com muita atenção e sem preconceitos.

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