Goodbye Ceausescu

A catarse do regime comunista romeno passa aqui, como a catarse da Alemanha de Leste passava em "Adeus Lenine", pelo anedotário

Todo o cinema da "nova vaga romena" (como, com propriedade ou sem ela, lhe chama o léxico crítico internacional) tem repousado, em parte substancial, numa relação com o passado recente da Roménia, e concretamente com o falecido regime comunista. Com frequência - como no filme de Cristian Mungiu sobre duas raparigas à procura de um aborto clandestino, "4 Meses, 3 Semanas e 2 dias" -, esse passado e esse regime são até mais do que um não-dito, são um "não-aludido": limitam-se a estar lá, e a gente sabe que o facto de estarem lá é, em última análise, uma chave importante (ainda que não obrigatoriamente fundamental).


Com "Histórias da Idade de Ouro", filme em cinco episódios, todos escritos por Cristian Mungiu mas realizados por ele e outros quatro colegas, dá-se, talvez pela primeira vez, um nome à coisa, assim ostensivamente posta no centro das atenções: é a "idade de ouro", terminologia agora empregue com óbvia ironia, mas dantes, no tempo da propaganda de Ceausescu, levada muito a sério.Portanto, cinco histórias sobre a vida de todos os dias (anos 70, anos 80) durante o regime do "conducator". Uma aldeia que se prepara afincadamente para receber a visita de dignitários do estado; um repórter fotográfico que tem de retocar as fotos tiradas durante a visita de Giscard d''Estaing a Bucareste (apagar o chapéu ao francês ou acrescentar um a Ceausescu: é o episódio mais voltado para o surrealismo propagandístico); as atribulações de um zeloso activista empenhado na alfabetização de uma aldeia inteira; um rapaz e uma rapariga envolvidos num esquema vigarista (o episódio mais longo e mais sisudo); e o melhor de todos, que não é "A Morte do Senhor Lazarescu" mas podia ser (se a personagem se chamasse Lazarescu) "a morte do porco do senhor Lazarescu": uma impecavelmente tensa incursão pelo absurdo quotidiano, com uma família (citadina) desesperada para matar o porco que lhe foi oferecido (resolvem gaseá-lo na cozinha do apartamento).

Em todos, as personagens são olhadas com doçura - mesmo os censores do episódio com o fotógrafo, ou o empenhadíssimo alfabetizador - retratadas numa mistura de ingenuidade crédula, falta de jeito, e instinto de sobrevivência. É por isso que, mesmo sem sabermos o lugar que ocupa na Roménia actual a "memorabilia" do regime comunista, às tantas nos ocorre o célebre "Adeus Lenine": a catarse também passa pelo anedotário.

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