A casa dos mortos

A vida de Patti Smith também é uma história de mortos.

"Dream of Life" também é o nome de um disco de Patti Smith, o do seu "come back" em finais da década de 80. Puxado para título do filme de Steven Sebring, é justo que seja tomado mais pela letra do que pela referência: "Patti Smith - Dream of Life" é um filme onde Patti Smith "sonha" a sua vida, uma rememoriação de pessoas, lugares, acontecimentos, feita numa cadência e num registo associativo de que em certos momentos se podia dizer serem, propriamente, "oníricos". Sebring andou atrás da "madrinha do punk rock" durante alguns anos, acompanhou-a domestica e publicamente, filmou-a em casa e "on the road", em digressão. Depois, deu-lhe a última palavra: "Dream of Life" é uma espécie de longo monólogo de Patti Smith, a sua voz e o seu "texto" são o centro condutor da montagem e o elemento aglutinador de toda a diversidade (imagens de arquivo dos anos 70, fragmentos encenados, actuações ao vivo, pequenos momentos classicamente "rockumentary") de que o filme de Sebring se compõe.

Sendo - ela não o nega - a "vida com que sonhou", a vida de Patti Smith também é uma história de mortos. Falar da sua vida implica, como ela diz, falar de "um tempo em que todos os meus amigos estavam vivos". Há muitos mortos na vida de Patti Smith: evidentemente Robert Mapplethorpe, mas também o irmão, e ainda outros, William Burroughs, Allen Ginsberg, ´"ícones", inspirações, figuras paternas, amigos. "Dream of Life" fala de todos eles, às vezes parece que é mais sobre eles do que sobre Patti Smith, e se isto dá a "Dream of Life" uma dimensão "mortuária" um pouco inesperada, às vezes elegíaca (o breve apontamento sobre Ginsberg) outras quase "fetichista" na sua memorabilia da morte (a cena em que ela acaricia, é o termo, as cinzas de Mapplethorpe), também acentua as analogias oníricas - como naqueles sonhos em que todos os nossos mortos "voltam". Ou então, uma espécie de nobreza, como se Patti Smith aproveitasse um documentário sobre si própria menos para se auto-homenagear e se auto-retratar no centro do mundo e mais para relatar a sua vida como simples parte de um mundo muito mais vasto. E com isso o filme ganha, porque também é um olhar sobre figuras e factos da cultura americana, "underground", "marginal", das últimas décadas (e especialmente dos anos 70 e 80). O que não impede que, sendo isto um filme sobre os pais, os amantes e os irmãos de Patti Smith, também apareçam os filhos, os biológicos e os "adoptivos" (Michael Stipe, Thom Yorke e, num breve plano, juraríamos que Bono).

"É preciso tirar o que está a mais", diz Patti Smith a certa altura, pouco antes de uma cena numa praia onde se fala da redução ao essencial como cúmulo do trabalho de uma vida. Deve ter sido o único conselho de Smith a que o realizador Steven Sebring (que a certa altura até promete ir ver o "Don''t Look Back" que nunca tinha visto) não prestou atenção. Só é pena haver em "Dream of Life" certos momentos em que Sebring parece andar a correr atrás do monólogo de Patti Smith, andar a correr atrás da "ilustração" de maneira um pouco aleatória, deixando a imagem tornar-se "lastro", que está lá só porque tem que estar. Mas não tem - e há alturas, quando Patti Smith entra em "transe" poético e narrativo, em que o melhor é fecharmos os olhos e imaginarmos um ecran negro.

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