Heróis e vilões: procuram-se

A gargalhada já é menos espontânea, os "gags" dependem mais da vontade de desconstruir o mundo mágico convocado. Em resumo, terá chegado o tempo de parar, para procurar outros heróis e vilões.

Em desafio constante ao imaginário da Disney, a Dreamworks regressa pela terceira vez à figura do ogre bom, deslocado num mundo que se pretende uma síntese do conto de fadas, levando, de novo, a técnica da animação de bonecos a prodígios técnicos inimagináveis.

A ideia do argumento revela-se engenhosa: concentrar num espaço determinado, em torno de Shrek e da sua "medonha" princesa Fiona, os heróis e heroínas arrancados a ficções de diferentes origens, e, no campo oposto, um conjunto de vilões desejosos de afrontar o Bem.

O maniqueísmo da proposta possui óbvios atractivos e presta-se a divertidas variações sobre os mitos, até na medida em que parece não hesitar na inclusão, quase anárquica, de inesperados comparsas. O pretexto desencadeador passa pela morte do rei Harold, a que deveria suceder o genro, o desajeitado ogre, incapaz de se conformar com o protocolo e com os trajes reais, provocando hilariantes "gags", que descobre a existência de uma alternativa no longínquo príncipe Artur Pendragon, adolescente inadaptado numa corte que mais parece um colégio recheado de jovens indisciplinados e partidários de todo o tipo de praxes. O facto de se convocar a lenda arturiana para uma ficção já de si repleta de excursos, vem propiciar uma outra espessura, mas dispersa o interesse no centro da acção.

A aparição de Merlin e dos seus feitiços pode agradar a um público mais adulto, divertido pelo reconhecimento do jogo "intelectual" de fundir mitos e referências, mas corre o risco de se afastar do público-alvo da narrativa, o infantil, perdido numa acumulação de personagens, nem sempre identificáveis. Claro que existe sempre o atractivo do burro (a voz de Eddie Murphy), companheiro de Shrek, em tandem com um elegante "gato das botas", figura picaresca vocalizada por António Banderas, dando o lado cómico imediato, acrescido pela troca de personalidades e pela multiplicação de bebés monstrinhos, em "realidade" e em pesadelo.

No entanto, o cerne da narrativa exige a compreensão das razões que levam o Príncipe Encantado a reunir os vilões (a Rainha-Má contra a Branca de Neve, o Capitão Gancho contra Peter Pan, ou Gepeto contra Pinóquio, por exemplo), obrigando a uma visão de conjunto a que o público infantil dificilmente poderá aceder. Contas feitas aos prós e contras, "Shrek III" mantém a qualidade visual do produto, revela uma notável inventividade, nomeadamente nas cenas de viagem marítima ou no modo como articula o conjunto de belas, com Cinderela, Branca de Neve ou a Bela Adormecida a parodiarem as suas estereotipadas "personae". Contudo, e sobretudo se compararmos com o episódio original, detecta-se um certo cansaço e esgotamento da fórmula: a gargalhada é menos espontânea, os "gags" dependem mais da vontade de desconstruir o mundo mágico convocado. Em resumo, terá chegado o tempo de parar, para procurar outros heróis e vilões.

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