The real mccarthy

É uma coisa que vem em todos os manuais: um filme histórico, um filme de reconstituição de época, raramente é inocente e raramente o seu âmbito se cinge à história e à época em causa. Como diz a máxima, "os factos pertencem ao passado, mas ideias pertencem sempre ao presente". Isto não será uma verdade universal mas é algo de particularmente verdadeiro no que toca a "Boa Noite, e Boa Sorte", segunda experiência de George Clooney na realização depois de "Confissões de uma Mente Perigosa" (2002).

Clooney vai desenterrar uma das facetas mais negras do século XX americano, a paranóia anti-comunista e decorrente sanha persecutória do senador McCarthy - que em princípios da década de 50 causou bastante mais estragos na "coesão social" da América do que o próprio comunismo, real ou putativo, das suas vítimas, e deu cabo das vidas profissionais de muita gente (só em Hollywood há dúzias de histórias famosas), para além de ter coberto de "nobreza" algo que nem sempre é muito bonito, a delação. Clooney tem razões pessoais e familiares para se interessar pela época e pelo tema em questão, visto que o seu pai, jornalista, teve a sua dose de problemas com o mcarthyismo. Pertencendo à "ala liberal" de Hollywood, Clooney tem também as suas razões políticas. Não é por desfastio nem por falta de assunto que alguém se lembra de ir buscar McCarthy, mas por "raccord" mental fácil de estabelecer numa América ainda mergulhada nas tensões pós-11 de Setembro, "Patriot Act", invasão do Iraque, escutas clandestinas, etc e etc. Subtil e inteligente, Clooney (que não é de facto nenhum Michael Moore) não constrói nenhuma equivalência explícita, nem aponta nenhum McCarthy contemporâneo. Limita-se a tocar na essência das questões: a liberdade de expressão, o direito ao desacordo (e porventura o direito à dissensão), e o modo como isto (e não a sua supressão ou perseguição) tem a ver com a própria natureza da democracia. Elementar, pedagógico e oportuno. Usa como veículo para isso um célebre programa televisivo da CBS, o "See It Now", que apesar de inevitáveis pressões (e alguma chantagem propriamente mcarthyista) pegou na lebre practicamente desde que ela começou a correr e nunca a deixou fugir, tendo tido um papel importante na consciencialização da opinião pública para o que havia de negativo nas actividades do senador e, a partir daí, para o seu "desarmadilhamento". "Boa Noite, e Boa Sorte" era, de resto, a expressão com que o programa terminava sempre, pela boca do seu apresentador, o jornalista Edward Murrow (David Strathairn). Mas mais do que Murrow ou qualquer outro membro da equipa, o protagonista do filme é o próprio programa, a sua equipa, os seus bastidores, desde o momento em que começou a abocanhar McCarthy até ao momento em que este caiu em desgraça. Um período curto, tenso, crispado - exactamente os três adjectivos com que mais apetece descrever o filme de Clooney.

Filmado num preto e branco áspero, num cinzento cor de fumo (aliás omnipresente, era uma época em que toda a gente fumava), praticamente só em planos de interior no edíficio e nos estúdios da CBS, "Boa Noite, e Boa Sorte" é um filme extraordinariamente compacto, de exposição narrativa sequíssima, e muito hábil na gestão duma espécie de "mise-en-scène" do "acossamento". Qualidades que o ligam, de modo bastante evidente, às tradições do "cinema liberal" americano dos anos 60 e 70 e aos estilos e intrigas claustrofóbicas de cineastas como Sidney Lumet, John Frankenheimer ou Alan J. Pakula. A crueza estilística, mas também o "no nonsense", a maneira de cortar a direito e ir directo ao assunto, a ausência de floreados, tudo tem algo a ver com essa tradição, que para mais também se norteava, no essencial, por uma preocupação de intervenção política. Mas a grande astúcia de "Boa Noite e Boa Sorte" quase que leva o filme para territórios de ficção científica. Falamos da utilização extensiva de imagens de arquivo do senador McCarthy, seja em alocuções televisivas seja no decorrer dos seus famigerados inquéritos. Não há um actor para desempenhar o papel de McCarthy, mas McCarthy, "the real McCarthy", tem quase tanto "screen time" como qualquer dos actores e é tão ou mais protagonista do que eles. Clooney, em entrevista que publicamos, defendeu a opção: ao entregar McCarthy a McCarthy libertou-se do retrato e da composição, e sobretudo da respectiva discussão, considerando ao mesmo tempo que era mais importante dar a ver McCarthy "ao natural" do que em reconstituição. Evidentemente, essa opção atribui ao filme uma espessura especial, um "efeito de real" que vem envenenar a ficção e sobretudo a relação do espectador com ela. Mas ao mesmo tempo, e isto é muito curioso, o que fica é um filme sobre o confronto com um "homem-imagem", uma criatura que existe de e pelas imagens de televisão.

Não estamos longe dum dispositivo clássico de ficção científica, série B ou não: o "vilão" é alguém que só se contacta através dos ecrãs montados na sala de controlo na nave espacial dos heróis, ou seja, o estúdio-cápsula da CBS de onde o filme não sai. Já vimos mais paranóico, mas sobretudo já vimos menos inteligente.

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