Eu, peter sellers o actor e os seus fantasmas

Ao contrário de Guiness, também camaleónico, Sellers nunca teve uma "persona" sua, uma imagem de marca a que possamos agarrar-nos; foi quase sempre a pluralidade de bonecos que insuflou, um vazio que outros podiam preencher, ao sabor do trabalho meticuloso que ele próprio desenvolvia. Esta estranha "biografia", "Eu, Peter Sellers", enfatiza este lado de personalidade em branco, capaz de todos malabarismos de personificação alheia, incluindo as contradições de um enormíssimo ego, por detrás de uma "personagem" fraca e algo pusilânime. Um dos elementos decisivos para muitas das questões que se levantam sobre este filme passa pela escolha de Geoffrey Rush para encarnar o papel principal, trazendo para a ficção biográfica, apesar de uma relativa (a possível) parecença física, um confronto forte entre biografado e "biografante". Rush não prima pela discreção, não se poupa a caretas e excessos, colando-se a Sellers, mas, por vezes indo para além dele.

Uma outra opção não ajuda a que o filme decorra calmamente nas águas do "biopic" simpático e facilmente digerível: Rush olha para a câmara, a encenação desconstrói a acção num distanciamento pseudo-brechtiano que nunca funciona. Por um lado insiste-se na similitude de situações, por outro, quer-se desmistificar, talvez para engrandecer o homenageado ou para satisfazer a vaidade concomitante do "homenageante", Rush. Por isso mesmo, assistimos à enumeração das rábulas, por ordem cronológica, mas salientando umas e apoucando outras. Por isso se insiste no primarismo de um complexo de Édipo demasiado óbvio e obviamente interpretado por Miriam Margolyes.

O que falta a este "A Vida e a Morte de Peter Sellers" (é este o título original) acaba por ser um ponto de vista, que não seja uma conciliação de pontos de vista vários e, até, contraditórios: interessante a relação com a primeira mulher (Emily Watson, controlada e "potável"); completamente anedótica e insuportável a representação da paixão por Britt Ekland ou a figura do cartomante (Stephen Fry, pouco à vontade). No cômputo geral, a vontade de ser fiel ao (e justo com) carisma do actor resulta em grande sensaboria e num arrastado veículo para outro actor. Claro que tem interesse fílmico, até pelas tentativas de "dar cara" a Kubrick, David Niven ou Blake Edwards, mas tudo se perde numa quase indistinção representativa. Fica a boa vontade de dar corpo aos fantasmas de Sellers e de olhar para uma época, por interposta figura.

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