Não, não é uma fábula "michaeljacksoniana"

Eis um filme ao qual a notoriedade só virá fazer mal. Já está na calha para os Óscares de 2005 (foi considerado o melhor filme do ano para o National Board of Review of Motion Pictures) e tem tudo, a partir daqui, para ser insuflado e promovido à oitava maravilha do mundo que não é de longe nem de perto. É, antes, um pequeno filme, sensato e minimamente sensível, inofensivo q.b., cuja menoridade se pode defender com algum gosto. Pelo menos enquanto não houver meio-mundo a gritar à obra-prima, altura em que seria preciso dizer a verdade pura e dura (ou seja, que posto na grande escala cósmica "À Procura da Terra do Nunca" não vale um caracol).

"À Procura da Terra do Nunca" até vale mais pelo que evita do que pelo consegue. É sempre sinal de boa vontade defender um filme por estas razões. Mas expliquemo-nos: o filme de Marc Forster (autor do sobrevalorizadíssimo "Monster's Ball", que, lá está, deu o Óscar a Halle Berry) inspira-se na figura de J. M. Barrie (1860-1937), o dramaturgo escocês celebrizado por "Peter Pan", e o seu argumento conta a história da escrita dessa peça e do contexto pessoal, nela largamente reflectido, em que Barrie (interpretado por Johnny Depp) a escreveu. Um casamento a desfazer-se e uma relação (no filme, pelo menos, castíssima) com uma viúva (Kate Winslet) e respectivos filhos - que seriam, estes últimos, projectados nos heróis de "Peter Pan". Coisa que "À Procura da Terra do Nunca", com estes ingredientes, podia ser e não é: uma fábula "michaeljacksoniana" cheia de "magia" e "evasão" sobre um homem adulto que, perante fealdade do mundo, elege a eternização da infância e a persistência da "fantasia" como panaceia para todos os males. A tentação espreita, é verdade, e existe algures no filme como "subtexto" (é de resto, a "moral" de mais fácil extracção, é ver o final e a conversa de Barrie com o miúdo depois do funeral). Mas, imaginando que a grande luta do filme é uma luta para não ser a reiteração enjoativa dessa fábula, detectam-se dois factores decisivos.

Que são estes. Primeiro, a permanência de um fio realista e gelado, ideal para contrapôr à tentação da fábula puramente escapista. Não estamos a falar da história da doença da viúva, resolvida em melodrama "gonflé" e pesadote, puxa-lágrimas destinado a reforçar a crueldade do mundo e a dar substância ao tal "subtexto" (como bem se vê na representação "privada" de "Peter Pan" para a viúva moribunda); mas antes da faceta de "crónica conjugal" do filme de Forster, com o relato (num momento ou noutro, com uma frieza de relatório) das progressivas distância e incomodidade de Barrie e da mulher (Radha Mitchell); ou da descrição dos problemas concretos da montagem da peça, e da sugestão do trabalho e dos artefactos que são precisos para sustentar a "fantasia". Gera-se um desconforto e uma rugosidade que equilibram o filme e equilibram a própria personagem de Barrie, com Depp a saber incorporar nela uma incomodidade que é mais do que a mera interpretação de "Peter Pan" como algo tipo "roman à clef" - e mesmo que o filme diga (ou faça por dizer) o contrário, a personagem de Barrie, a sua incomodidade é essa, parece ser a única a saber que a "fantasia" é uma mecânica, e uma mecânica de palco, nada mais.

Johnny Depp, claro, é o outro factor. Actor talhado para se fazer "política de actores": as suas personagens parecem ligadas, filme após filme, por qualquer coisa que transcende a simples gestão e exibição de uma "imagem". Ver essa "coisa" a trabalhar em "À Procura da Terra do Nunca" será, no fim de contas, a mais forte razão para se recomendar a espreitadela da praxe.

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