Os assassinos estão entre nós

Jonathan Demme assumiu-se como um ecléctico cronista das múltiplas facetas da vida americana moderna: vindo da crítica cinematográfica e da publicidade, passando pela produção independente, atingiu a notoriedade com uma comédia "proletária", no tom iconoclasta de um Preston Sturges, intitulada "Melvin and Howard" (1980). Depois experimentou com os terrores moralizantes de "Selvagem e Perigosa" (1986), com uma comédia "mafiosa" a piscar o olho ao "thriller", "Viúva... Mas Não Muito" (1988), chegando aos óscares e ao cânone com o perturbante "O Silêncio dos Inocentes" (1991), para depois se abalançar a um melodrama como "Filadélfia" (1993), primeira entrada da temática da Sida no cinema "mainstream".

O filme que agora estreia, "O Candidato da Verdade", elabora um cuidadoso "remake" de um clássico da década de 60, "The Manchurian Candidate", mantendo o título original, que possibilita o reconhecimento, ao contrário do que acontece com o título português: o filme de John Frankenheimer chamou-se entre nós "O Enviado da Manchúria" (1962); o "remake" dá pelo nome de "O Candidato da Verdade". Antes de mais esta diferença na titulação dá conta da dificuldade de adaptar a designação à mudança de cenário e de contexto político, mas confunde o que se pretende como diálogo imediato entre os dois objectos.

A primeira alteração de monta passa pela actualização do conflito. Do regresso da Guerra da Coreia, com todos os traumas pós-bélicos num frágil Frank Sinatra, interessado em entender as razões dos seus perturbadores sonhos que envolvem o assassinatos de dois companheiros de esquadrão (o filme de Frankenheimer), passamos ao presente, a uma fictícia campanha eleitoral para presidente da América (aproveitando, em subliminar pano de fundo, o duelo George W. Bush/John Kerry), com o protagonista a dar forma e contornos do politicamente correcto - o oficial traumatizado, com o mesmo nome, é agora entregue ao carisma de Denzel Washington, acrescendo uma óbvia mudança de estatuto estelar e de arcaboiço físico. Também o par amoroso - Janet Leigh, no original dos anos 60 - se desloca para uma actriz afro-americana, Kimberley Elise, modificando, inclusive, a sua função no conflito, agora uma agente do FBI. Os nomes das personagens mantêm-se, mas a sua configuração corresponde a novos tempos e a novas ficções políticas.

No entanto, a mais ampla de todas as metamorfoses consiste em colocar no centro do conflito uma estrela como Meryl Streep, que rouba o filme, ganhando uma preponderância que a "secundária" Angela Lansbury, não poderia ter concedido nos anos 60 ao papel da mãe "hiperpossessiva". O enredo constrói-se de qualquer forma na mesma linha: um veterano da Guerra do Golfo, atormentado pelos seus sonhos, envolve-se pelos caminhos da memória, lutando, não (como no original) contra a lavagem ao cérebro dos comunistas russos e chineses, que haviam aprisionado o pelotão, mas contra uma mais elaborada implantação de "microchips", destinada a submeter a vontade dos "heróis" aos desígnios de uma sinistra corporação, a Manchurian Global.

freud e hamlet.

Neste complexo labirinto do poder, o herói condecorado com a Legião de Honra (Liev Schreiber), por via da manipulação da verdade dos factos, destina-se a candidato a vice-presidente dos EUA, numa relação claramente incestuosa com a mãe, poderosa e ambiciosa senadora (no filme de Frankenheimer era o segundo marido desta o senador). O incesto já existia no original, com uma famosa cena do beijo na boca entre mãe e filho, mas acentua-se e confere ao "remake" um tom mais trangressor e terrífico. Há quase uma atmosfera "gore" na figuração dos pesadelos e na encenação dos sucessivos assassinatos e perseguições, que conduzem ao final "feliz". O "thriller" conforma-se, pois, a uma ultrapassagem do contexto da Guerra Fria, para se concentrar nos meandros da política dos interesses económicos e na definição de uma ultramontana direita populista americana, que bem reconhecemos para além dos rótulos ficcionais.

A suprema inteligência do filme de Jonathan Demme consiste na capacidade para fazer coexistir o imediatismo da intervenção política com uma tremenda intemporalidade da acção: o discurso vazio e sem sentido sobre a Democracia existe paredes meias com o terror contemporâneo, marcado pelo 11 de Setembro e pelas ameaças de uma estratégia globalizante do poder do dinheiro e do tráfico de influências. Em Frankenheimer, a ilógica do argumento correspondia a um delírio onírico provocado. Em "O Candidato da Verdade" existe um "vale tudo" que os anacronismos do sistema justificam. Na personagem do candidato a vice-presidente, Ben, Liev Schreiber exagera os tiques de Laurence Harvey (o intérprete da versão de 1962), acentuando o desconforto e a paranóia, na medida em que parece ainda mais desamparado perante o labirinto de interesses à sua volta.

A teoria da conspiração apenas sugerida no filme de Frankenheimer ganha contornos infernais no filme de Demme (o inimigo é interno), com vilões actuando nas margens e com uma aleatória violência, que ganha maior sentido, porque a vítima preferencial tem a cara de uma outra estrela, Jon Voight, no senador preterido para o cargo de vice-presidente.

As sequências dos sonhos, favorecidas pela cuidadosa intromissão de rigorosos efeitos especiais, conseguem uma ambiência de terror evasivo e subtil, a traçar tangentes com uma inteligente hipótese de ficção científica, com a vantagem de avançar com uma pluralidade de pontos de vista, que vão acrescentando pequenos pormenores ao conjunto.

Do outro lado do pesadelo, está a fabulosa composição, maior do que o real, de Meryl Streep (mais uma nomeação para o Óscar?), perfeita de contenção e excesso, em explosiva e complexa mistura. Frenética e impositiva, a actriz foge aos "clichés" a que a personagem poderia conduzir e comanda o filme, marcando-lhe o ritmo e o tom. Existe no "final feliz" uma moralidade amoral, que dá conta da complexidade das questões envolvidas e a figura repreensível da senadora, criada por Streep, é a chave para esse subterrâneo fio freudiano (e hamletiano) que se vai gizando.

E, quando inevitavelmente comparamos os dois filmes, apercebemo-nos de que estamos perante duas faces de uma mesma "moeda americana", unificadas pela tradição que nomes como Alan J. Pakula ou Frankenheimer trouxeram ao "thriller" político, como género [ver caixa nestas páginas]. Por isso, ambos ganham em serem (re)vistos em conjunto e em contexto.

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