A uura dos lgares-comuns

Um dos mais persistentes equívocos na relação de muitos de nós com a arte do cinema, e também no modo como ela se manifesta nos discursos críticos, é a "política de autores". Supõe-se correntemente que essa implica a valorização de determinadas obras não apenas "em si" mas pela sua inscrição nas características genéricas já reconhecidas a um "autor". O reconhecimento anterior permitirá uma maior disponibilidade ao impacto da obra e esse virá confirmar e alargar os horizontes do reconhecimento.

Acontece que historicamente a "política de autores" formulada nos "Cahiers du Cinéma" nos anos 50 não foi só isso e não foi essa a sua novidade. Tal como definida por François Truffaut na crítica a um filme considerado "menor" de Jacques Becker, "Ali Babá" (1955), tratava-se de negar o axioma de que haveriam filmes "falhados" ou "logrados"; o importante era os "autores" e se Becker era reconhecido como tal não interessava que o filme fosse "falhado" porque seria sempre preferível a qualquer outro de um realizador que não fosse reconhecido como "autor". Foi isto a "política de autores". E é, porque continua a ser praticada. Por vezes, fico mesmo perplexo quando constato que na expectativa de determinado filme, mas antes do concreto impacto da visão, há ferozes "autoristas" que já estão em êxtase, que os há.

É essa uma absorção que não se pode dissociar de um horizonte tendencial da cinefilia. Distingue-se ela de outros modos de amor da arte por ser tendencialmente monomaníaca e se constituir não só como modo privilegiado de estar no mundo mas mais, como grelha interpretativa desse próprio modo de estar, sendo que qualquer obra é passível de ser tanto mais exaltada e criticamente legitimada quanto o conjunto de referências cinéfilas que convoque. E nesse sentido, é um discurso potencialmente entrópico e mesmo bloqueador.

"Lá Fora" é um daqueles filmes de eu gostaria muito de gostar, mas de modo nenhum consigo. Ao contrário da formulação por Truffaut da "política de autores" é justamente a atenção e o interesse particulares meus pela obra de Lopes, o que na condição primeira de espectador lhe devo pelos seus filmes quase todos, e depois o que mais globalmente pude ir elaborando sobre o universo do "autor", que me deixam na absoluta perplexidade face a este somatório de estereótipos.

Vejamos a "exposição": loira em descapotável vermelho. A perplexidade é imediata, mas admitamos que, tratando-se da "exposição", o factor "autor" possa entrar em linha: na medida em que tenhamos presente estar perante um filme de Lopes, pode-se até deduzir ser um risco considerável abrir o filme expondo logo o estereótipo sobre o qual se vai operar. Não demora, com efeito, a que o realizador nos introduza no território particular do filme, um condomínio privado de luxo, e que o funambulismo da câmara nos induza já uma outra dimensão. "Helás", os estereótipos não cessam de se acumular, os tiques também.

Mas Lopes e Lopes, Fernando e João, realizador e argumentista, falam de quê? De personagens, de situações, de imaginários, de possíveis realidades próximas? Não o chegaremos a perceber. Aquilo que incomodamente percebemos é um bombardeamento de situações e referências.

Há um sistema de "voyeurismo"? Convoca-se como actor Joaquim Leitão que se estreou como realizador com "Duma Vez por Todas", filme de "voyeurismo"! Laura (Alexandre Lencastre) é uma vedeta mediática? Pois é uma Rita Hayworth revista por Madonna! Ocorrem condições urbanas e suburbanas? Pois cita-se "Cimêncio", ensaio de Diogo Seixas Lopes, filho do realizador! E convocam-se filmes, directa ou indirectamente, "A Roda da Fortuna", de Minelli, e "Pierrot, Le Fou", de Godard, no primeiro caso, "O Eclipse", de Antonioni, e "Persona", de Bergman, no segundo!

Fernando Lopes inscreveu insistentemente nos seus filmes marcas de relacionamentos. Só que aqui o mecanismo referencial da cinefilia é bloqueador do próprio intento de uma abordagem transfiguradora do real próximo. Como se pode admitir, por exemplo, que a apresentação do adolescente filho de Laura seja feita com a citação do "Pierrot",

"je m'appelle Ferdinand"?! É o estereótipo do mecanismo referencial, não a consideração de uma personagem.

É demasiado simples fazer recair só no argumento o regime geral do lugar-comum. Para além das co-responsabilidades do realizador nesse argumento, há outros dados. É motivo de triste espanto, por exemplo, que nas duas cenas, com o filho e a psicoterapeuta, em que Laura poderia ter existência própria para além do estereótipo, o realizador não tenha resistido à banalidade de inserir música "de fundo", gesto tanto mais tristemente surpreendente quanto Lopes é o mais argutamente "musical" dos cineastas portugueses.

Retomemos a imagem emblemática de Laura/Madonna/Rita Hayworth. Se nisso vai também um reconhecimento das conhecidas fixações do imaginário de João Lopes, o que mais custa é ver Fernando Lopes reproduzir uma cinefilia estereotipada que não é senão paródia incessante, à maneira de De Palma. Custa, e muito!

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