Quanto mais me bates...

Vencedor do Prémio Especial do Júri no Festival de Sundance de 2002, "A Secretária", de Steven Shainberg, pôs os críticos americanos a discutirem a representação do sexo no cinema, como uma espécie de último agitador de tabus - ou seja, o equivalente americano a "Romance X", de Catherine Breillat -, o que parece demasiado para filme tão modesto.

É que se "A Secretária" põe em cena a cartilha sado-masoquista, fá-lo da mesma maneira que o "mainstream" se apropria das margens: com um efeito normalizador. Este é menos um filme que se dedica a explorar esse território, mas antes o olha de fora, com um programa de fetichismos e recalcamentos saídos de um psicologismo barato. Em última análise, é um filme sobre o amor: o selo SM é apenas o veículo "offbeat" para um género, a comédia romântica, que já não sabe o que fazer para se reinventar.

Adaptado de um conto de Mary Gaitskill, o filme começa com Lee Holloway (Maggie Gyllenhaal, a confirmar talentos num primeiro papel de protagonista) a regressar a casa depois de uma longa temporada num instituto psiquiátrico. Com um velho historial de auto-flagelação e "malaise" suburbana, que é reactivado de cada vez que o equilíbrio familiar é ameaçado, decide, por fim, entrar no mundo da normalidade. Isto é: arranjar um emprego.

É contratada como secretária por um misterioso e reprimido advogado (James Spader) com uma longa lista de "fétiches". É o encontro de duas almas torturadas e solitárias. Os melhores momentos de "A Secretária" decorrem nesse escritório ostensivo, onde os erros de dactilografia se transformam em sessões de punição e a relação patrão-secretária se torna um exercício de poder e submissão.

Shainberg é um bom gestor da narrativa e não tem pressa em acelerar: é aí que o rumo do filme parece escapar-nos. Mas a qualidade do realizador talvez esteja na direcção de actores: Maggie Gyllenhaal e James Spader são valores seguros, adequando-se à subtil ironia do filme, sem nunca roçar a caricatura (que, num e noutro caso, seria de esperar). No entanto, a bizarria que "A Secretária" parecia anunciar vai-se atenuando à medida que se aproxima da sua conclusão, em tom de fábula adocicada. Afinal, não é mais do que a enésima versão de "boy meets girl", Cinderela com um bónus de comportamentos desviantes.

E pensar que houve críticos americanos que consideraram o filme "pornográfico"...

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