Por trás de cada grande mulher...

Não há nada de novo debaixo do sol, diz-se. Talvez não seja uma frase sempre verdadeira, mas muitas vezes é. No caso de "As Horas" é-o, inapelavelmente.

Talvez por permeabilidade ao "hype", talvez por excesso de boa vontade, até nos passou pela cabeça que em "As Horas" pudesse haver algo de novo ou, pelo menos, de particularmente notável. Engano, é um filme visto e revisto dezenas de vezes, variação em torno de temas, motivos e estruturas feita de uma maneira que não só não é original como dificilmente se pode achar regeneradora.

Se déssemos largas à costela da má vontade, o assunto arrumar-se-ia depressa - e "As Horas" seria apenas um daqueles filmes que costuma aparecer nos meses que antecedem a cerimónia dos Óscares, e que menos do que um filme são uma espécie de pacote de luxo, um embrulho de cauções prestigiosas contendo os temas e os tiques que, conforme o gosto do dia e o espírito do tempo, perfazem uma impressão de arrojo, de contemporaneidade, e de cinema "artisticamente relevante". Seja a vontade melhor ou pior, "As Horas" também é um produto desses, área, aliás, em que a Miramax se tem especializado. Embora pouca coisa seja directamente comparável a "Magnólia", "As Horas" parece animado por uma vontade de pastiche do filme de PT Anderson, a começar na "complexidade" narrativa e a acabar em pormenores como os que se referem ao uso da música, por exemplo.

Mas não estamos aqui para dar largas à má vontade, "hélas pour nous", o que não impede que seja impossível partir de outra base que não este carácter imitador, "poseur", postiço, do filme de Stephen Daldry. Postiço como o nariz de Nicole Kidman, esse "gadget" cuja função é tão essencial fora do filme como dispensável dentro dele (acredita-se mais que Kidman é Woolf por causa do nariz?).

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Kidman, no papel da escritora inglesa, é de algum modo o centro narrativo do filme - está a escrever "Mrs Dalloway", o livro que noutro segmento Julianne Moore está a ler, e com cuja personagem principal Ed Harris constantemente compara Meryl Streep no segmento contemporâneo. Para lá destas coincidências, o filme nunca consegue sugerir a necessidade de articular estes três tempos, nem quando lá para o final explicita a relação entre o segundo (o de Moore) e o terceiro (de Streep). O romance de Michael Cunningham sugere, talvez o argumento de David Hare o sugerisse - mas no filme de Daldry parece mera astúcia exibicionista de um (de facto inexistente) brilhantismo formal.


Infelizmente para ele, "As Horas" não é o primeiro filme sobre mulheres, nem o primeiro filme ostensivamente estruturado em torno de retratos femininos psico-sociológicos. Até já houve um cineasta, George Cukor, que chamou a um filme seu "As Mulheres" - é de facto difícil haver ideias novas. Cukor nem será uma referência directamente convocável, mas já Douglas Sirk o é, em especial a propósito do segmento de Julianne Moore. Não só Sirk, também o seu mais eficaz "re-fazedor" contemporâneo, Todd Haynes, de quem estreará na próxima semana "Longe do Paraíso". A personagem de Moore, uma "housewife" aprisionada naqueles anos 50 limpinhos do apogeu da classe média, será mesmo o elo mais fraco do filme. Nada a opor ao brilhantismo interiorizado com que Moore carrega a personagem, mas é tudo tão esquemático, tão "pot pourri" sirko-haynesiano, tão repetitivo (Moore já fez este papel centos de vezes), que até acaba por se perceber por que é Daldry acaba por ter que apostar num "tour de force" tão escusado, tão reiterativo e de gosto tão duvidoso como é a ilustração (o quarto inundado) do pesadelo da personagem.

Mutatis mutandis, de clichés também vive a "impersonation" de Woolf por Kidman. Mais nariz menos nariz, é outra vez o número da excêntrica, "misfit" na sociedade do seu tempo, assombrada pelos seus demónios, tão espantados como alimentados pelo seu dom criativo. Assim como há clichés do "filme sobre pintores", "As Horas" repete os clichés do "filme sobre escritores" - o facto de se tratar de Virginia Woolf acaba por ser irrelevante, num segmento onde se sente a falta de verdadeira envolvência e interacção com o meio que rodeia a personagem. A certa altura destapa-se um caminho cheio de implicações interessantíssimas (a referência ao medo que Woolf sente da criadagem), mas o filme tapa-o logo a seguir.

Ainda assim, e apesar de ser o segmento mais permeável a clichés, com o seu retrato da intelectualidade nova-iorquina, essa acaba por ser a parte mais rica de "As Horas". Muito por causa de Meryl Streep - é bom vê-la de regresso a filmes onde ela é apenas mais uma peça, com maior ou menor importância, mas apenas mais uma peça, em vez dos filmes em que se faz abstracção de tudo para que se veja só a "grande actriz". Streep é evidentemente uma grande actriz, e isso vê-se melhor quando há coisas à volta dela. A angústia e a inquietação da sua personagem em "As Horas" são muito mais densas do que as das outras personagens, pela simples razão de que a sua origem é muito mais incerta, muito menos explicável, muito mais difícil de atribuir a uma linear relação de causa e efeito. Streep, naquele seu registo de naturalismo sofisticado feito de técnica e de tripas em igual dose leva a palma - a sua personagem, com uma determinação histórica ou social muito menos vincada do que as outras, ajuda bastante, mas Streep cultiva-lhe uma zona de sombra profundamente interiorizada que a certa altura parece funcionar fora do controlo do próprio filme. Já alguém sugeriu que Streep devia ter interpretado as três personagens...

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Num filme de mulheres, mas com personagens tão formatadas (ressalvando a de Streep), que lugar há para os homens? Como que invertendo o ditado que diz que há sempre uma grande mulher por trás de um grande homem, "As Horas" tem lugares para eles, sim. À excepção do segmento dos anos 50, onde John C. Reilly se debate com uma personagem tão formatada como Moore (e exposta quase como uma caricatura baça do chefe de família bondoso e simplório), quase se pode incorrer na provocação de dizer que os homens são personagens mais ricas e mais enigmáticas do que as mulheres. Pense-se por exemplo na de Stephen Dillane, o marido de Virgínia Woolf. Há, naquela devoção feita de amparo, paciência e permanente concessão de espaço uma dimensão mais perturbante do que a sugerida pelos maneirismos de Kidman - e dir-se-ia que talvez nem Stephen Daldry se tenha apercebido completamente a que ponto isso acontece, como se vê na cena da estação, onde a maneira como Dillane incorpora o seu destino e o destino daquela relação o transformam no verdadeiro protagonista face à postiça grandeza "bigger than life" da personagem de Woolf.


Ed Harris, no segmento contemporâneo, também se deixa apanhar por esse lado postiço - não por acaso, a sua personagem é um escritor a morrer de sida, que se mantém vivo apenas para responder à devoção da sua "Mrs. Dalloway", a personagem de Streep. De qualquer modo, Harris, excelente actor, enverga a cabotinice inerente ao número com uma secura nada dispicienda, fornecendo, com a sua camada de cinismo e fanfarronice, um contraponto sólido à visceralidade de Streep. Mas também é neste segmento que aparece esse notável Jeff Daniels. A personagem é secundária, mas o seu estatuto não - com a chegada de Daniels é um "passado" que chega. Os minutos que tem para defender a personagem (mescla de tristeza e provavelmente culpa, oferecida em discreta reserva e distância), são certamente dos melhores de "As Horas", lembrando que se trata de um dos mais desaproveitados actores do cinema americano dos últimos vinte anos.

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