Venham a mim as criancinhas

O lado mais negro da força talvez seja este: reconhecer que face ao empedernido "Ataque dos Clones", o primeiro filme da saga até tinha alguma rebeldia.

Luke Skywalker ou Darth Vader? Por vezes, uma obra faz coisas destas ao seu criador: pode-se partir do antagonismo destas duas personagens míticas da primeira trilogia de "A Guerra das Estrelas" para traçar duas leituras opostas do percurso de George Lucas. Uma é encará-lo como um bravo realizador que tem dedicado os últimos 25 anos ao aperfeiçoamento técnico das imagens cinematográficas, a par da criação de um épico de fôlego com contornos bíblicos (a primeira trilogia será como que o Novo Testamento e aquela que se está a desenrolar o Velho Testamento); a outra é apontá-lo como o homem que abriu a caixa de Pandora e libertou todos os males, inaugurando a era dos "blockbusters" (com "Tubarão", de Spielberg) e a consequente degeneração do cinema e do seu público.

Duas visões simplistas? Pois são, mas até aí Lucas terá que assumir a culpa, já que não soube (ou não quis) dotar o universo da saga senão de códigos inequívocos e facilmente reconhecíveis: heróis voluntariosos e incorruptos, vilões irremediavelmente votados às trevas, triunfo do bem sobre o mal, etc. Dito de outro modo, nunca deixou o benefício da dúvida.

Mas a segunda trilogia, de que se estreia hoje "Episódio II: O Ataque dos Clones", e que pretende reconstituir a caminhada do jovem Anakin Skywalker em direcção às forças do mal (e à máscara de Darth Vader), abria a hipótese de uma nova esperança (não era esse o título do primeiro filme da saga, "A New Hope"?). Diz Lucas que a sua intenção "era criar uma história sobre alguém que começa por ser uma boa pessoa [sic], mas é seduzida pelo mundo das trevas e torna-se maléfica."

Em "O Ataque dos Clones", cuja acção decorre dez anos depois do anterior "A Ameaça Fantasma" (presume-se que a última década não representou qualquer ameaça à boa formação do aprendiz Jedi), ficam alguns esboços dessa transformação, sem ancoragem aparente: a irritação e arrogância de Anakin perante o paternalismo do mestre Obi-Wan Kenobi, a vingança da morte da mãe (de quem se separara, sem grandes hesitações, em "A Ameaça Fantasma") e, "last but not least", o dilema da incompatibilidade entre o amor e o dever profissional de um Jedi.

Tudo isto irrompe de forma mais ou menos inconsequente, sem deixar antever qualquer processo de transformação: a personagem de Anakin Skywalker age instintivamente, de modo automático (de resto, como todas as outras), como se estivesse lá apenas para confirmar as intenções da narrativa (como se até ele soubesse do irremediável destino que o aguarda...). Narrativa que se quer fluida, transparente, eficaz e que, para mais, tem um horizonte definido: sabemos como tudo vai acabar, história, personagens e actores estão reféns da primeira trilogia, pelo que introduzir indefinições hamletianas de carácter ("to be or not to be...") em Anakin Skywalker seria uma perturbação na força das pretensões de George Lucas. Afinal, tudo começou, em 1977, porque o realizador queria "fazer um filme para crianças que... apresentasse uma espécie de moralidade básica. Toda a gente se esquece de dizer às crianças: 'Hei, isto está bem e isto está errado'".

a transformação de Lucas

Já a "transformação" do grande educador Lucas é mais facilmente discernível: "Se me tivessem perguntado, há 30 anos, se era isto que acabaria por fazer, teria respondido: 'Não, de maneira nenhuma'. Nem me teria passado pela cabeça que ia fazer filmes de ficção científica dirigidos a espectadores de 12 anos. Teria dito que hoje estaria a fazer documentários ou filmes vanguardistas...", revelou recentemente numa entrevista.

Depois de deixar a casa dos pais para estudar cinema, avisando "Nunca mais vou voltar. Serei milionário antes dos 30", Lucas integrou a fornada de "movie brats", juntamente com Coppola, Spielberg, Scorsese e De Palma, preconizando uma nova abordagem autoral do cinema americano. "Tínhamos em comum o facto de termos crescido nos anos 60, protestando contra a Guerra do Vietname", explica Lucas no livro de Peter Biskind, "Easy Riders, Raging Bulls". "Íamos conquistar o mundo. Partilhávamos a mesma paixão pelo cinema. Nunca pensámos que íamos fazer dinheiro com isso ou que era uma forma de nos tornarmos ricos e famosos".

O que aconteceu, então, a Lucas? Desiludiu-se, como o jovem Skywalker. A sua primeira longa-metragem, "THX 1138" (1970), que projectava um mundo futurista onde a produtividade havia substituído os afectos, foi um fiasco. Alegadamente, "ficou desapontado por não haver público para os filmes artísticos americanos". "Não sejas tão bizarro, tenta fazer algo que seja humano", disse-lhe Coppola. Quando os seus companheiros faziam o "mea culpa" da América sob o desencanto e pessimismo dos seus filmes, Lucas, ele próprio um pessimista, atribuiu-se a missão de combater a depressão. "American Graffiti" (1973), o segundo filme, inspirado na sua infância numa pequena cidade da Califórnia, deu-lhe razão e o primeiro milhão de dólares - aos 29 anos. "Todos sabemos, e o cinema dos últimos dez anos tem feito questão de lembrá-lo, quão terríveis somos, os erros que cometemos no Vietname, a ruína em que deixámos o mundo, os idiotas que somos e como tudo está podre", dizia Lucas então. "Tornou-se deprimente ir ao cinema. Decidi que era altura de fazer um filme onde as pessoas, ao sair do cinema, se sentissem melhor do que quando entraram".

efeito esponja

Ainda para mais, antes de "A Guerra das Estrelas", as crianças estavam "perdidas", sem possibilidades de fuga fantasista. Para Lucas, da geração do fim do "western", tratou-se de recuperar - reciclar - um certo imaginário perdido com o regresso à infância, mais exactamente à sua infância, preenchida com filmes de aventuras e BD de ficção científica. "Guerra das Estrelas" procurava fazer essa síntese dos clássicos, de "Flash Gordon" ao "western", investindo-a com as novas roupagens dos efeitos especiais. Vinte e cinco anos depois, "O Ataque dos Clones" mantém essa profusão de referências, saltitando entre o "western" ("A Desaparecida", de John Ford, na cena da vingança da morte da mãe), o "peplum" (o confronto na arena), o romance palaciano (o idílio amoroso entre Amidala e Anakin), a ficção científica (a perseguição à la "Blade Runner"), etc. Como num filme de série B, mas aí o efeito esponja estava ao serviço de uma estética que resultava da dissensão das diversas fórmulas. Em "O Ataque dos Clones", de tão desinvestidas que estão, emergem apenas como sinais de aviso, secundarizados pelo pedantismo da sofisticação tecnológica.

Cada novo episódio da saga traz consigo a promessa de novos (e)feitos especiais e este é o primeiro inteiramente concebido em digital, onde todas as imagens passaram pelo crivo do computador. O que, se pretende alargar as possibilidades do cinema, não deixa de ter os seus efeitos perversos: Lucas pode ser o cineasta da visibilidade, tentando tornar credível o incredível, mas o que descola da pirotecnia visual de "O Ataque dos Clones" é a falsidade das imagens, que não fazem mais do que chamar a atenção para o seu modo de produção. Por outro lado, a inovação tecnológica resulta em que a primeira trilogia (que se passa no futuro) pareça hoje anacrónica.

Mas a maior perversidade pende sobre os espectadores: os que há 25 anos lamentavam o esvaziamento do cinema com a "Guerra das Estrelas", terão, provavelmente, de assumir hoje o arrependimento e, não sem nostalgia, reconhecer que face ao empedernido "Ataque dos Clones", o primeiro filme da saga até tinha alguma rebeldia. Mas isso foi há muito, muito tempo, numa galáxia longínqua...

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