Fechem Os Olhos

Na grande autoestrada americana dos "road thrillers" há agora "Jeeper Creepers". Onde estão dois irmãos e um assassino, que começa por ser um cavaleiro negro, depois um antropófago e, finalmente, uma figura que voa para contornos delirantes. Como nos filmes de terror, as personagens fazem algo de estúpido que leva os espectadores a odiá-los. Por exemplo, não fechar os olhos...

Eles sabem o que se fez no passado

E se, em tempos de pouca prosperidade, os sinais de reabilitação de um género como o cinema de terror partissem de filmes que se apropriam de referências de outrora?

Foi isso que fizeram "O Sexto Sentido", de M. Night Shyamalan, e, mais recentemente, "Os Outros", de Alejandro Amenábar. Numa altura em que a produção é dominada pelo fogo-de-vista dos efeitos especiais e das trepidações da câmara, um filme tão fora do seu tempo quanto "Jeepers Creepers", de Victor Salva, é motivo suficiente para um pequeno regozijo.

Entra-se nele por uma estrada da América rural, desértica, que dois estudantes, Darry (Justin Long) e Trish (Gina Philips), atravessam no seu carro, um apropriado modelo dos anos 70, já que quase tudo neste filme aponta direitinho a essa década.

Podia ser "Badlands"/ "Noivos Sangrentos" (1973), de Terrence Malick, mas é a outros ex-"movie brats" que Salva vai buscar inspiração, nomeadamente a Steven Spielberg e a Francis Coppola, não por acaso produtor do filme, através da sua American Zoetrope, tal como das anteriores longas-metragens de Salva (afinal, não foi com um filme de terror, "Dementia 13", que Coppola se iniciou no cinema, pela mão de Roger Corman?).

Vendo bem as coisas, também podia ser mais um filme de terror para adolescentes, na linha de "Scream/Gritos" ou "Sei o que Fizeste o Verão Passado" - Darry e Trish são típicos estudantes universitários, a que as cores garridas das roupas acentuam o estereótipo -, mas o pressuposto cai por terra porque "Jeepers Creepers" parece retardar o surgimento do seu "serial killer", preferindo demorar-se nos arrufos inconsequentes de dois irmãos. Outro "desvio": o par de protagonistas não é um casal de namorados, mas um rapaz e uma rapariga a caminho de casa dos pais durante as férias (só mais tarde, surgirá um interesse "amoroso" implícito, mas o par é outro...).

Autoestrada dos road thrillers

Enquanto os dois se entretêm a decifrar a matrícula de um dos raros veículos em trânsito naquela estrada - "Gay fever" ou "Gay forever", sugere Darry -, um ameaçador camião cor de ferrugem, semelhante a uma locomotiva saída de um "cartoon", persegue-os furiosamente. É apenas um susto, o camião ultrapassa-os, mas como em "Duel/ Um Assassino Pelas Costas" (1971), de Spielberg, e "The Hitcher/ Terror na Auto-Estrada" (1986), de Robert Harmon, esse é o primeiro dos encontros na grande auto-estrada americana dos "road thrillers".

Até porque, como Trish relembra, nos filmes de terror há sempre uma personagem que faz qualquer coisa estúpida que leva os espectadores a odiá-la. A afirmação pode assumir um tom paródico, mas serve, sobretudo, a Salva para contrariar as expectativas do público: Trish e Darry resolvem investigar um pouco mais o perseguidor, aproveitando uma breve ausência para espreitar o "habitat" dele: num cenário saído de "Os Pássaros", de Hitchcock, um túnel conduz a um subterrâneo a que o psicopata de "O Massacre do Texas" (1974), de Tobe Hooper, chamaria "lar, doce lar".

Nova perseguição, mas é então que "Jeepers Creepers" começa a entrar pelo território do sobrenatural, de novo a desafiar as regras, como se tentasse congregar vários sub-géneros. Basta atentar na figuração do próprio perseguidor, que surge primeiro, ao longe, como uma espécie de cavaleiro negro, para, progressivamente, assumir contornos mais "monstruosos", até subir aos céus com a sua vítima de eleição (os "gender studies" terão aqui um promissor "study case"...).

"Isto é uma homenagem a todos os filmes que eu gosto", diz Victor Salva, que cresceu a ver clássicos dos anos 50 da Universal na televisão "com insectos gigantes e tudo", e que escreveu "Jeepers Creepers" depois de ver "O Sexto Sentido" e "o Projecto Blair Witch" - "ao sair da sala de cinema, pensei: 'Este é o tipo de filmes que eu fazia no liceu, porque é que não posso fazer algo assim?'"

Se "Jeepers Creepers" é, por vezes, incongruente e toma de empréstimo uma série de referências, estas nunca figuram como um "patchwork" ou "pastiche", antes são incorporadas naturalmente na lógica interna do filme - de resto, como o "monstro" antrópofago se vai apropriando de partes das suas vítimas (não é isso que se ouve na canção "Jeepers Creepers": "where'd you get those eyes?")

Não são, como nos filmes do tipo "Scream", citações paródicas que acabam por anular, de certa forma, o terror. Parecem estar lá, justamente, para que possamos descobrir nelas o ar de família com a produção do género nos anos 70 (não era, também ela, rugosa, imperfeita?) Tal como Darry e Trish vão decifrando palavras no alfabeto das matrículas. A única que lhes escapa é a do seu próprio carro, "SVM", onde alguém sugeriu ler-se "Save me". Será? É provável. Até porque é inevitável encontrar em "Jeepers Creepers" ecos da história pessoal do seu realizador.

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