Há Uma Alma Aí Dentro?

Tim Burton é um cineasta singularíssimo. O que é que lhe aconteceu, então? "Planeta dos Macacos" é um filme falhado, mas podia ser pior. Ou a versão optimista: é bom, mas podia ser melhor.

Desde 1993 que se anunciava o regresso da macacada. Aparentemente, cinco filmes e duas séries não tinham chegado para esgotar o filão, nem os esforços apaziguadores de Chewbacca (o companheiro símio de Han Solo em "Guerra das Estrelas") haviam atenuado as inimizades entre homem e macaco: Oliver Stone deveria realizar "Return of the Apes" e já numa fase posterior, Arnold Schwarzenegger (com Stone entretanto transferido para tarefas de produção) seria o cientista messiânico que voltava atrás no tempo para salvar a humanidade de uma catástrofe genética.

Antes que o nome de Tim Burton figurasse no projecto, outros realizadores foram sendo recrutados. Schwarzenegger queria Philip Noyce, mas o guião de Terry Hayes não agradou à Fox, que visionara um filme bem mais próximo do espírito dos "Flinstones" do que de "Exterminador Implacável". Normal, portanto, que a escolha seguinte recaísse sobre Chris Columbus (de "Sozinho em Casa").Mas houve outros: James Cameron, Michael Bay ("Pearl Harbor"), Robert Rodriguez.

Desvarios à parte, Tim Burton parecia perfeito para o trabalho: a sua educação cinéfila consistiu numa dieta rigorosa de produções da casa de horrores Hammer, filmes de ficção científica e outros cozinhados de série B. Além disso, a sua filmografia iconoclasta estava repleta de figurações testadas em animais, do homem-morcego à mulher-gata. O realizador de "Batman" resistiu, a princípio, mas um homem não é de ferro e, quando a Fox lhe disse que não pretendia um remake nem outra sequela, acedeu.

Foi o último de uma linhagem de obstinados: a Mark Wahlberg bastou-lhe um "rendez-vous" de cinco minutos com Burton para aceitar aterrar no "Planeta dos Macacos", Helena Bonham-Carter congratulou-se quando o realizador lhe disse ter sido a primeira pessoa em que pensou para fazer de chimpanzé, Tim Roth abandonou, de bom-grado, o papel que lhe estava destinado em "Harry Potter".

Porquê? Duas palavras: Tim Burton. Levou tempo, mas Hollywood acabou por descobrir as diferenças entre um mau realizador (o que não tem ideias), um bom realizador (o que tem muitas ideias) e um grande realizador (o que tem uma ideia). Burton (como Lynch) pertence a esta última casta de cineastas singularíssimos, detentores de um universo próprio, que lhes permite, de vez em quando, cair nas boas graças da indústria cinematográfica norte-americana - evidentemente, os 70 milhões de dólares que a nova versão de "Planeta dos Macacos" rendeu no fim-de-semana de estreia nos EUA, serviram para tranquilizar os mais cépticos.

Reimaginação?

O que é que sucede, então, com os que, antes de Hollywood, já tinham prestado as devidas vénias à marca de Burton? Talvez isto: "Planeta dos Macacos" é um filme falhado (por se tratar de Burton), mas podia ser pior (imaginem Michael Bay a fazê-lo). Ou a versão optimista: é bom, mas podia ser melhor.

Realizador e produtores têm repetido que esta é uma "reimaginação" do original de Franklin J. Schaffner e que não vale a pena procurar grandes coincidências entre os dois: não é no planeta Terra, mas noutras paragens intergalácticas que os macacos são senhores, a Estátua da Liberdade não tem direito a qualquer "cameo", nem os astronautas do ano 2001 (ou, para o efeito, do ano 2029) vestem tangas à Tarzan.

Pois não, mas a ideia-base é a mesma - um astronauta (Leo/Mark Wahlberg) vê-se forçado a aterrar de emergência num planeta dominado por chimpanzés falantes que submetem os últimos humanos à servidão -, bem como a estrutura - a explicação de que a origem do "mal" está na Terra, e a surpresa final, piscadela de olho de Burton ao filme de 1968.

De resto, e excluindo o regresso ao plateau original, Lake Powell, no Arizona, a recriação de Burton parece limitar-se a uma inversão de papéis - com Charlton Heston, o astronauta de 1968, transformado em símio sénior moribundo, repetindo, em relação aos humanos, a maldição que lançara aos macacos no final do filme de Schaffner: "Damn you all to hell!" - e a uma caracterização mais sofisticada dos macacos. Ou seja: se os habitantes do primeiro "Planeta dos Macacos" eram quase indiferenciados, a mesma máscara servindo de molde a todos, na versão de Burton, as semelhanças com os humanos são deliberadamente mais assustadoras: cada macaco tem uma individualidade demarcada, não só em termos de aparência, mas também de maneirismos (o sotaque "British" de Bonham-Carter servirá, não de caução aristocrática, mas também como lembrança dos altos valores dos colonos ingleses que fundaram a grande nação americana, antes desta se tornar numa república das bananas?). Se Heston ordenava aos gorilas, em 68, para retirarem "as garras imundas" de cima dele, os macacos do ano 2001 lavam as mãos (peludas) depois de tocarem num humano, usam dentaduras postiças e fazem a barba.

E já que se fala de personalidades múltiplas, o problema é que o Burton-visionário-de-série-B não se entende com o Burton respeitoso e demasiado sério deste "Planeta dos Macacos": os breves arremedos paródicos que constituem o seu tributo ao filme original parecem brincadeiras inocentes de uma criança com medo de ser repreendida, preferindo a meditação filosófica sobre a inversão da teoria da evolução darwinista. Se isso fazia algum sentido em 68, como parábola da ameaça de Guerra Fria, hoje, depois de tantas invasões de alienígenas gerados em computador, é mais difícil de acreditar. Sobretudo depois de Kubrick demonstrar em "2001: Odisseia no Espaço", estreado dois meses antes do primeiro "Planeta...", que os macacos pertenciam ao passado e que o futuro estava algures no espaço. Por isso, pode-se interrogar o filme de Burton, como o temível gorila Thade (Tim Roth), ao escancarar a boca de Leo: "Há alguma alma aí dentro?" Queremos acreditar que, em ambos os casos, a resposta é positiva.

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