Brincando Aos Clássicos

Quando apareceram os irmãos Coen, encontravam-se ligados a uma renovação do tecido narrativo, sobretudo nos interstícios do "film noir": "Blood Simple" (1984) reformulava o suspense hitchcockiano; "Miller's Crossing" (1990) e "Barton Fink" (1991), com tangentes fascinantes ao universo de Faulkner, remetiam para mais profundas vertentes psicanalíticas, e surrealizantes, do género; "Arizona Jr." (1987) apostava na comédia negra e na auto-paródia.

A partir de "The Hudsucker Proxy" (1994), estranhamente reminiscente de Capra, podemos talvez falar de um embate frontal com o sistema: a marginalidade de um certo cinema independente aparecia instrumentalizada pela indústria com o intuito de se renovar. Por isso, não espantou que "Fargo" (1996), mistura curiosa de géneros (western, policial, noir), tivesse o Óscar do melhor argumento. E de melhor actriz, para a fabulosa "mrs. Coen", Frances McDormand, na grávida e "low profile" mulher xerife.

Neste contexto, "Irmão, onde estás?" representa um estranho papel: por um lado, o regresso a uma originalidade e liberdade do cinema independente; por outro, a conivência com estratégias comerciais evidentes. Veja-se o uso de uma estrela maior como George Clooney ou o facto de se tratar de uma produção ligada à Universal, e sobretudo ao mundo complexo da Disney, por via da Touchstone e da Buena Vista, na distribuição americana.

Que fica destas circunstâncias de produção? Desde logo uma simplificação, quase uma infantilização, da narrativa. E, no entanto, o argumento não poderia ser mais ambicioso. Quer-se, nada mais nada menos, reconstituir o percurso mítico da "Odisseia" de Homero, não num contexto de guerra, mas na Depressão dos anos 30: três pequenos criminosos, condenados a trabalhos forçados escapam a fim de reaver o tesouro que um dele, Ulysses McgGillis (Clooney, sem grande esforço, em piloto automático), teria enterrado. E assim se inicia o percurso que culmina em Ithaca, apropriadamente o nome da ilha homérica onde a Penélope desta epopeia (Holly Hunter algo apática) já arranjou novo pai para as muitas filhas que integram um grupo vocal infantil.

Pelo caminho, temos umas pindéricas sereias, responsáveis pela denúncia e entrega às autoridades de um dos fugitivos, Pete (John Turturro), o Ciclope, simplesmente um escroque vendendor de Bíblias com uma pala num olho (saborosa rábula de John Goodman), ou Babyface Nelson (Michael Badalucco) em paródica inscrição do período histórico retratado. Tudo decorre, aliás, no período de reeleição do governador (Charles Durnning), com muita música bluegrass, o período áureo das rádios locais, a chegada ao topo das preferências do trio constituído pelos "nossos" heróis e uma inacreditável cerimónia coreografada da Ku Klux Klan.

O que falha nesta adaptação livre e delirante de Homero - uma das personagens chama-se mesmo Homer Stope? Quase tudo. A correspondência é forçada e anedótica. A vontade de fazer uma "comédia negra", tipo "Arizona Jr.", esbarra na proliferação excessiva de episódios de qualidade muito diversa. A música, com que se pretende dar coerência ao projecto, ligando-o de forma indissolúvel ao Sul profundo, afoga o filme num "musical" sem rumo. A cena do Ku Klux Klan revela as fraquezas de um argumento bem intencionado, mas inane. Por último, a estrela, Clooney, que fora brilhante na sátira brilhante "Os Três Reis", nunca é credível mascarado de fugitivo e perdido numa selva de sinais contraditórios.

No final, já nos desinteressámos do jogo de encontrar pistas homéricas e ainda não entendemos o que realmente interessa na acção principal moderna. Conseguimos resgatar alguns momentos curiosos: a gravação do disco com o vento a assolar o estúdio, ou a tempestade final, ou ainda a caricatural omnipresença dos "mensageiros dos deuses", fardados de polícias.

No entanto, não existe nunca uma unidade que permita fazer de "sketches" soltos um filme coerente, quanto mais uma Odisseia moderna.

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