Pleasantville - Viagem Ao Passado

"Pleasantville ? Viagem ao Passado" é o filme com que Gary Ross, também argumentista, se estreia na realização. E é uma estreia surpreendente, até porque não é muito habitual no cinema americano contemporâneo assistir-se a um "primeiro filme" com tanta ambição ? inclusivamente, formal. Gary Ross, cujo trabalho se limitara até agora à colaboração em argumentos de filmes mais ou menos anódinos (os malfadados "Flinstones" serão o título mais significativo da sua carreira) parece ter acertado na "mouche": "Pleasantville" conquistou nomeações para os Óscares e, noutro plano, ameaça transformar-se em objecto de culto, tal é já a profusão de "sites" na Internet dedicados ao filme. A ideia motriz do filme é óptima. Dois irmãos adolescentes (Tobey Maguire, revelado em "A Tempestade de Gelo", de Ang Lee, e a "starlet" Reese Whiterspoon) vêem-se subitamente transportados, por artes mágicas cuja plausibilidade não interessa discutir, para o universo de uma série televisiva americana dos anos 50 chamada "Pleasantville", tomando o lugar de duas personagens. Esta série, "Pleasantville", é desenhada por Gary Ross como uma espécie de "pot pourri" de toda a imagética higienizada e normalizada que rodeou a representação que os anos 50 americanos quiseram dar de si próprios ? era o tempo da consolidação do "american way of life" como baluarte da defesa do estatuto dos Estados Unidos na "nova ordem" mundial saída da II Guerra Mundial. O mundo de "Pleasantville" (importa destacar já a excelência do trabalho de "art design" e de fotografia) é assim uma compilação de ícones televisivos, publicitários e cinematográficos, que provocam um imediato efeito de reconhecimento e se organizam em jeito de "maquette" dos anos 50 americanos, da sua ideologia e do seu imaginário: a pequena cidade de província, a célula familiar como base social absoluta e indiscutível, o "snack bar", os automóveis, as superfícies lustrosas e imaculadas, o elogio de uma concepção doméstica do mundo. Construída a "maquette" deste mundo a preto e branco, a meio caminho entre a ficção científica e um filme de Tim Burton, pode então iniciar-se a fábula. Os dois irmãos oriundos dos "nineties", se começam por se adaptar à "estufa" de "Pleasantville", cedo vão começar a transmitir a sua sensibilidade "moderna" aos restantes habitantes da cidade. E aparece outra boa ideia: essa transmissão, que equivale a uma "libertação" da auto-reprimida população de "Pleasantville", é expressa pelo filme através da inclusão da cor. A princípio apenas pequenos adereços do "décor" (uma rosa, um automóvel, um vestido), a pouco e pouco serão as próprias personagens a tornarem-se, por sua vez, "coloridas", num processo que em muitos casos (acontece com a personagem da mãe, interpretada pela fabulosa Joan Allen) ocorre pela descoberta de uma sexualidade até aí recalcada. Esta intrusão da cor, sobretudo a partir do momento em que ela passa a cobrir por completo algumas personagens, permite a Gary Ross ainda outra metáfora: a paranóia perante a "diferença" ("fora com os coloridos" passa a ser um "slogan"), que na América branca descrita pelo filme tem mesmo na cor (o preto ou o vermelho, por exemplo?) a sua melhor expressão. Se "Pleasantville" é uma fábula, cinematograficamente assente em boas ideias bem resolvidas, não escapa no entanto ao moralismo inerente a essa sua condição. Ou seja, a aniquilação da ordem da cidadezinha de Pleasantville acaba por corresponder ainda a uma ideia de "aperfeiçoamento": é a substituição de um mundo que se supunha "bom" por outro que os dois irmãos vão provar, por A + B, ser "melhor". Apesar da aparente liberdade conquistada pelos habitantes da cidade, nada nos garante que esse novo estatuto não corresponda à mesma ordem do antigo ? apenas desenhado de maneira mais colorida. Uma fábula precisa de ter alguma simplicidade para ser "fábula", mas "Pleasantville" é exageradamente simplista no modo como chega às suas conclusões. De certa forma, para ele o mundo continua a ser a preto e branco.

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