Fortíssimo candidato a "melhor Ford de sempre"

"A Paixão dos Fortes", que a partir de hoje aí está, em cópia nova, é um momento alto numa filmografia, a de John Ford, que abunda em momentos altos: se "A Paixão dos Fortes" é um fortíssimo candidato a "melhor Ford de sempre", é-o ao lado de pelo menos uma dúzia de outros filmes, com igualmente fortíssimas candidaturas. Dizer isto é também dizer, logicamente, que estamos perante um dos mais expressivos momentos do cinema clássico americano e de um dos seus géneros de eleição (ou "o género" por excelência, como há quem defenda): o "western". Somando Ford e "western", sabemos ao que vamos, e "A Paixão dos Fortes" é um filme exemplar na definição do "western" segundo John Ford, onde a vitalidade "em primeiro grau" dos códigos e das regras coexiste com a sua permanente superação. Sem rupturas nem desconstrução (afinal, estamos numa das mais legítimas incarnações da ideia de "clássico" aplicada ao cinema), mas com uma gigantesca consciência formal, um "western" de John Ford presta-se ao arquétipo tanto quanto se abre para outras e vastíssimas dimensões — como outros filmes de Ford, "A Paixão dos Fortes" pode ser visto como uma tragédia, apropriando-se da maleabilidade das formas do "western", sem no entanto as negar por uma vez que seja. De algum modo, é por isto que Ford é tão genial e, tantas vezes, tão incompreendido. Revendo o filme, é impressionante notar como a personagem de Wyatt Earp (Henry Fonda), a mais fordiana de todas no que toca a emoções e a reacções, acaba de certo modo por se secundarizar (há mesmo longos troços do filme dos quais está ausente) face à de Doc Holliday (Victor Mature). Não deixa por isso de ser o herói nem de corresponder ao olhar de Ford, embora não haja dúvidas do interesse especial que, para o cineasta, tinha a personagem de Mature. E esta é verdadeiramente a personagem mais trágica de "A Paixão dos Fortes": é um homem "com um passado" (qual, nunca fica inteiramente explícito, mas que regressa com a chegada da personagem de Cathy Downs, a "Darling Clementine"), refugiado em Tombstone numa qualquer espécie de expiação, tem queda para o alcoolismo e sofre de evidentes sintomas de tuberculose — e é difícil encontrar, em toda a obra de Ford, outra personagem carregada com semelhante dose de amargura e negrume. Mesmo que a crispação do pouco fordiano Mature possa por vezes parecer um dado demasiado evidente, a complexidade da construção da personagem é assombrosa (a anos-luz do que se começaria a fazer, dez anos depois, na voga do "‘western’ psicanalítico") e tem um dos pontos altos na celebradíssima sequência do "saloon" onde serve de "ponto" ao actor bêbedo que recita "Hamlet" — até que um violento ataque de tosse o obriga a sair da sala, pouco depois de chegar à parte que diz: "Thus conscience makes cowards of us all." Perante a tragédia pessoal de Doc Holliday, Wyatt Earp é, como nós, essencialmente um espectador, mesmo que também ele (a morte do irmão, por exemplo) viva a sua própria tragédia — assim como a rejeitada Clementine, assim como Chihuahua (Linda Darnell) que ama Holliday, sabendo que não é correspondida. O duelo final que reúne Earp e Holliday contra o clã dos Clanton tem então qualquer coisa de ritual catártico — e o lado unidimensional dos Clanton, os "vilões" do filme, justifica-se pelo facto de eles serem, fundamentalmente, vítimas sacrificiais, imoladas nesse duelo em O.K. Corral para redenção e salvação dos protagonistas. Mesmo que, no caso de Holliday, essa redenção venha com a morte, digna e libertadora. Toda a construção da sequência final em O.K. Corral é absolutamente admirável, com uma utilização dramaticamente perfeita do espaço e do tempo; sublinhando a dimensão catártica do confronto, toda a tensão incide sobre os momentos que o precedem, aparecendo o duelo propriamente dito como uma pura libertação de energias acumuladas. Mas esse rigor na construção dramática, se é algo que se vê muito bem nessa sequência, está presente desde o primeiro momento — ou não fosse um dos principais trunfos da arte de Ford. Veja-se, no início, toda a "mise-en-place" da narrativa, com a apresentação das personagens e situações, e repare-se como tudo funciona a partir de uma genial gestão de tempos e de tensões (a sequência em que Earp e Holliday se conhecem é um excelente exemplo). E veja-se como para Ford importa menos o "plano" (embora não haja nenhum plano menosprezável, estética ou dramaticamente) do que a "sequência", que tudo se decide no tempo e pelo tempo, através de uma progressão "invisível", para a qual, na sua discreta fluidez, a montagem tem papel preponderante. Quando se vê "A Paixão dos Fortes", toca-se na essência do cinema clássico. Na sua evidência. Nos seus mistérios.

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