Tarde Demais

Depois dos "regressos" de João Canijo e de Alberto Seixas Santos, chega agora a vez de José Nascimento, cineasta de uma só longa-metragem, o falhado "Repórter X", projecto demasiado ambicioso para uma equipa inexperiente, algures entre o esboço biográfico do jornalista/escritor Reinaldo Ferreira e a crónica das aventuras da sua personagem mais famosa, o dito Repórter X.

Ora, se algo ressalta de imediato na concepção de "Tarde Demais" tal parece ser a perfeita noção da adequação dos meios: da escolha criteriosa dos actores, à selecção dos locais de filmagem, passando por uma rigorosa contenção temporal. Partindo de um trágico "fait divers" e do subsequente relato jornalístico, o argumento possui o talento de limpar a acção de pormenores acessórios, para se concentar nas diferenças e conivências entre as quatro personagens centrais, tipificando-as, mas conferindo-lhes em simultâneo individualidade e complexidade.

As primeiras imagens dão-nos a figuração dos quatro náufragos, "perdidos no mar", ainda antes de nos permitirem perceber quão perto nos encontramos de Lisboa. A maré submerge o barco encalhado nos bancos do Tejo e a estratégia de salvamento inicia-se entre a decisão de Zé (uma interpretação fabulosa de Vítor Norte) e a desorientação de Joaquim (Nuno Melo), demasiado ansioso para se compadecer das dificuldades dos outros, demasiado irascível para se deixar envolver numa acção concertada.

Desde este momento se organizam as personagens por pares, em combinações mutáveis: Zé e Manel (Adriano Luz numa composição inesquecível) encontram-se unidos por uma amizade antiga, Joaquim e António (Carlos Santos) ligam-se pelo confronto de feitios e por rivalidades nunca bem definidas. Zé e Joaquim parecem ser os mais fadados para a salvação, enquanto Manel e António aparecem fisicamente diminuídos; Zé e António acabam por sobreviver, Manel e Joaquim sucumbem ao frio e às condições adversas.

Todo o filme se apoia em outras oposições dicotómicas. Por um lado, a luta pela sobrevivência opõe-se à inércia das autoridades. Por outro lado, a uma representação realista empenhada na reconstiuição das condições difíceis da pesca artesanal no Tejo, contrapõe-se uma ritualização dos modos de fuga, com a construção de um território abstracto, feito de lama, água, caniços, como se a uma visão neo-realista do drama fluvial (próximo de Alves Redol ou de Soeiro Pereira Gomes) se sobrelevasse uma mais intensa e mística figuração, aparentada com o universo de Tarkovski, por exemplo.

A essência deste surpreendente "Tarde Demais" passa, portanto, pela capacidade de transfiguração e de "fantasmização" de uma matriz realista inicial. Por isso resulta tão irónico saber que a salvação se encontra à distância da vista, por isso as luzes de Lisboa são a marca da impossibilidade e também uma espécie de miragem. Por isso é tão forte saber que se encena a morte não nos abismos desconhecidos do mar profundo, mas nos baixios assoreados do rio que banha a capital.

O desastre vai desenhando as suas próprias coordenadas: só o despovoamento do rio justifica o isolamento dos náufragos com Lisboa ali tão perto; só a incapacidade funcional da burocracia explica que, uma vez salvo um dos acidentados, se tenham abandonado as buscas, adiando-as para um improvável amanhã.

No entanto, aquela noite de todas as luzes e de todas as sombra, que o filme configura e encena, já não pertence ao reino da lógica e da política do real. Desde o momento em que, no barco, o filho de Zé, João (Francisco Nascimento, a confirmar que é um dos nossos melhores actores de cinema), se apercebe do desastre, entramos no domínio de um onirismo provocado. Mais do que uma crítica às instituições (sempre presente) é numa progressiva tensão trágfica que se constroiem as sucessivas peripécias.

Por uma coincidência trágica, Joaquim afasta-se do barco no preciso momento em que António é salvo; por uma ironia trágica o mesmo Joaquim aporta a Lisboa já morto, encerrado numa bóia. As deambulações do casal de filhos dos náufragos, pela noite dentro, possuem o carácter ilógico e peripatético do sonho. Quando se descobre o cadáver de Manel, num mochão, ele aparece como uma estátua de areia e de lama, maior do que a sua própria humanidade, vítima de um desgraçado "fado" e da inércia dos meios de socorro. Zé salva-se pelos seus próprios meios, aparecendo como um espectro por detrás das grades do porto. António é resgatado ao rio pela solidariedade dos companheiros de faina. Os últimos heróis anónimos do rio, num tempo em que já são sombras do passado, encontram-se entregues a si próprios e ao seu destino de representantes de uma espécie em extinção.

A grande força de "Tarde Demais" consiste precisamente em encontrar o tom cinematográfico ideal para captar esta pequena epopeia trágico-fluvial, sem demagogias nem maniqueísmos, com o rigor "musical" de quem sempre teve o tempo certo.

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