Saudade naufragada

Anos depois, Dear Esther volta a ser actual graças a Landmark Edition. Não tem o impacto do lançamento original, mas continua a ser uma experiência introspectivamente marcante.

Dear Esther

Chega-se a Dear Esther e há o assalto à curiosidade, pouco depois vêem-se os créditos finais e a curiosidade continua sedenta de mais. Andamos a nosso bel-prazer por uma ilha, como um pastor que não tem muita vontade de encontrar o seu rebanho. Aqui perder-se é encontrar-se, fazendo uma viagem pelo jogo e por nós próprios, pelo que amamos, pelo que queremos, eventualmente por quem somos.

Não é popularucho a enfiar o espiritual pela goela abaixo, deixando isso para a espontaneidade da criatura emocional que somos. Dear Esther foi publicado originalmente no início de 2012 depois de ter começado a sua vida como um mod de Half-Life 2. Foi um dos pioneiros na criação de um estilo de videojogo que não é dotado de jogabilidade segundo o cânone, abrindo o caminho a incontáveis obras que foram moldando o género, elevando-o nos melhores casos, denegrindo-o noutros.

Contudo, chegou recentemente ao mercado uma nova versão da obra, Landmark Edition, dando um novo sopro de vida à versão PC e, finalmente, fazendo o título chegar às consolas, nomeadamente, à PlayStation 4 e à Xbox One. Passaram-se vários anos desde o meu contacto inicial com a aventura, tendo-a terminado novamente várias vezes na consola da Sony, percebendo o que tinha sido polido, ouvindo pela primeira vez os comentários dos criadores, sem dúvida a principal novidade adicionada à obra em 2016.

Se leram a primeira frase do texto provavelmente perceberam que o título da The Chinese Room se presta a esconder-se quando e onde lhe apetece dos jogadores. Somos levados para uma ilha nas Hébridas, entregues à nossa sorte enquanto deambulamos pela cabeça de alfinete no meio do Atlântico. Não há objectivos definidos, nem uma forma certa de explorar o terreno; há, contudo, um arco narrativo que encanta quem joga, embalando-o a tentar saber mais sobre estas personagens, sobre o seu passado e os seus motivos.

Como não há cenas de vídeo para fazer a trama avançar, conforme exploramos a ilha vamos accionando a narração do jogo, o que torna obrigatório palmilhar todos os seus metros para assegurar que não há nenhum pedaço de informação que fica por testemunhar. Sempre que chegamos aonde a produtora quer, ouvimos a excelente vocalização de Nigel Carrington encher-nos os tímpanos com mais uma pepita do que lhe aconteceu, do que aconteceu à sua mulher, Esther; do que está ali a fazer rodeado de nada.

Esta excelente verbalização do narrador, sempre no tom certo, brilha parcialmente porque a matéria-prima é de primeira qualidade. A escrita é cuidada sem entrar em pretensiosismos, alimentando o jogo com os espelhos já mencionados, mas delineando a um ritmo eficaz a espinha do que aconteceu: a visita do casal à ilha, o acidente na M5, o escritor, o pastor, a paixão do casal partilhada entre si e pela ilha, a forma como o narrador vai informando o jogador do seu estado de saúde e, não menos importante, a construção emocional assente no desenvolvimento das personagens, algo que acaba por dar uma carga adicional ao final.

Contudo, terminar Dear Esther não é necessariamente chegar ao seu final. Desde que foi lançado que há uma parte da comunidade que o aceita como ele é, mas há outra falange que eleva a obra a conceitos muito mais profundos, espirituais; a conceitos muito mais elaborados. E se a ilha é, afinal, o purgatório? Talvez seja tudo um sonho? Não interessa muito o que cada um retira da obra, pois retirarão sempre do seu cerne uma história de amor em que o amor não é pastelão; Dear Esther é a escola do fogo que queima a mão que o acendeu.

Mesmo excluindo a sua génese como mod, Dear Esther está no mercado há quase cinco anos, ou seja, quem gosta deste tipo de jogos – onde se inserem Firewatch, Gone Home, Journey e o ainda recente Virginia – é muito provável que já tinha ido procurar e experimentar a obra que ajudou a começar este movimento. Para essa falange de jogadores, a grande novidade será os comentários dos criadores, nomeadamente, Dan Pinchbeck, Rob Briscoe, Jessica Curry. Felizmente, não precisam de comprar a nova versão, pois a versão PC recebe este conteúdo sem custos adicionais.

Sobre esta funcionalidade, importa mencionar que não é algo feito em cima do joelho, ou seja, não são meia dúzia de comentários gravados à pressa. De uma ponta à outra do jogo há o levantar da cortina sobre o desenvolvimento do jogo, a sua arte, a sua banda sonora, o processo de gravação, sendo possível, por exemplo, atestar como foi a evolução da obra vista por quem a criou. Vale seguramente chegarem ao final do jogo, mesmo que já o tenham feito várias vezes ao longo dos anos.

Graficamente é onde se nota mais o passar dos anos. Isto não quer dizer que Dear Esther: Landmark Edition seja uma obra feia, quer apenas dizer que em 2016 cairão muito menos queixos do que em 2012. As texturas e os itens espalhados pela ilha não são tão impressionantes, sendo um jogo que brilha muito mais pelo seu cômputo geral do que pela análise do pormenor. A ilha continua carismática, as cavernas continuam a terem o seu je ne sais quoi de mágico, há o frio e a desolação que cavalgam para fora do televisor, mas há também alguns pontos que não envelheceram tão graciosamente.

O nome mencionado há pouco, Jessica Curry, é a compositora da banda sonora. E, contrariamente aos visuais, o áudio continua a ser uma empreitada soberba. Mesmo ouvindo o álbum fora do contexto do jogo, são músicas que assaltam os tímpanos de emoção em riste, automaticamente lembrando-me de onde estava há quatro anos, imediatamente criando memórias de onde estou neste momento. Não há algo a apontar: esta composição musical é intrinsecamente parte da identidade de Dear Esther.

E se porventura estão a ponderar a hipótese de ter sido sorte de principiante, a história prova que Curry voltou a assinar músicas memoráveis nos jogos seguintes da produtora, Amnesia: A Machine for Pigs e Everybody's Gone to the Rapture. Dear Esther: Landmark Edition não tem o impacto que o original teve e certamente não é um videojogo para todos, todavia, se de algum modo desfrutaram dos jogos enunciados neste texto, é fundamental irem descobrir onde tudo começou. Caso já o tenham feito, joguem-no novamente e descubram vastas curiosidades sobre a sua produção e sobre quem o produziu. A todos: o final continua a ser o arrepio mais forte do jogo, mas não é o único.

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