Desapareceram todos e deixaram um jogo

Everybody's Gone to the Rapture propõe-se a revelar um grande mistério: o jogador tem de perceber as causas de um acontecimento que fez desaparecer todos os humanos de Yaughton.

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The Chinese Room

Depois de publicados Dear Esther e Amnesia: A Machine for Pigs, a produtora The Chinese Room colecionou amores e ódios. Apesar do primeiro jogo ter começado como um mod de Half-Life 2, foi com o seu lançamento autónomo em 2012 que os britânicos firmaram o seu nome na indústria dos videojogos. Agora, chega à PlayStation 4 a sua obra mais recente, Everybody's Gone to the Rapture, e o veículo de emoções volta a ser o grande destaque.

Estamos perante um jogo que nunca escondeu ser um grande mistério. Decorrendo numa aldeia inglesa rural chamada Yaughton na década de 1980, desde os primeiros minutos até ao final cinco horas depois, quem joga sabe que andará atrás de respostas. O cenário apresenta-se completamente desprovido de vida humana — houve um apocalipse que levou quem ali habitava; ao jogador compete a tarefa de perceber porquê.

Como quem está no ponto de partida para o desconhecido, há desde logo o fascínio em adivinhar o final, em colocar as fichas em algo surpreendente ou cliché; em tentar adivinhar o futuro como se faz num livro, filme ou série de televisão. Contudo, com os primeiros minutos dedicados ao jogo, começam a aprender-se as mecânicas usadas, a maneira como vamos sendo conduzidos pelo desenovelar da trama, e aprende-se a resfriar o oráculo e a viver mais o que se está a passar no ecrã.

Uma esfera de luz vai-nos guiando pelos momentos mais importantes, aqui representados por efervescências luminosas sem forma, pequenas animações de contornos que nos vão contando o que passou naquele momento. Ocasionalmente, em momentos críticos para a compreensão da narrativa, temos que agitar o DualShock 4 para a esquerda e para a direita, como se estivéssemos a activar uma memória com os próprios pulsos, contemplando o que o jogo nos está a tentar dizer.

Everybody's Gone to the Rapture não é um jogo ligeiro, portanto estes momentos são pesados, são medos, pesadelos, traições, amores não correspondidos, vícios, urgências: são complicações da vida humana; daquelas vidas humanas que deixaram de existir. Não é — nem pode ser — uma obra que se joga enquanto se está a fazer outra coisa; são inúmeras dicas que vão ajudando a formar uma ideia daquilo que poderá ter acontecido.

Todavia, seguir esta esfera é extremamente redutor. É importantíssimo vaguear por Yaughton, inventar os nossos caminhos, vasculhar todas as casas que podem ser abertas, ir aos quintais, aos bosques, aos parques de caravanas, aos caminhos de ferro, aos bares: até porque algumas das curtas animações já mencionadas estão fora dos trilhos principais, ou seja, haverá sempre quem complete o jogo passando ao lado de incontáveis pormenores.

Começamos a perceber que há uma zona de quarentena, um medo na população, pássaros que caem mortos; um rasto de lenços com sangue, muitas memórias de pessoas com dores de cabeça insuportáveis, um médico que diz estar a morrer, algo que não pode ser contido, enfim, o jogador nunca sabe mais do que o jogo quer, contudo, quem investir mais tempo chegará ao final com uma retribuição mais generosa.

A esfera de luz que nos guia vai mostrando a história de vários personagens, o papel que cada um teve na comunidade. É fácil perceber onde cada uma acaba porque, além de enganchar na seguinte mostrando o seu nome no ecrã, somos presenteados com alguns minutos em que o ecrã fica quase totalmente negro e temos que seguir centenas de pequenas luzes que cintilam, fazendo lembrar o nosso próprio espectáculo de pirilampos ou um caminho de velas que alguém que quis alumiar a transição. Na prática, é a forma do jogo indicar progresso e de fazer a transição entre várias áreas do cenário. Convém ainda mencionar que existem telefones e rádios espalhados por Yaughton que ajudam a complementar a história e que, obviamente, convém procurar.

Qualquer dos personagens não tem apenas uma dimensão. Vamos sendo avisados dos problemas de integração, de obsessões com o trabalho, pais e filhos, o amor expresso na impotência de subir as escadas para ver o que aconteceu a quem se ama há seis horas atrás, o ostracizar da comunidade, enfim, uma panóplia de processos complicados que sustentam de alguma forma as atitudes demonstradas nos momentos finais, ainda que fique o suficiente para chocar. Não é um final que explica tudo e não é um final que está à altura do que é jogado até então, contudo, não é um balde água gelada como são tantos clichés em tantas outras obras.

O principal problema de Everybody's Gone to the Rapture é a sua cadência, principalmente na primeira parte. Já se sabia que seria um jogo com uma jogabilidade ligeira, tal como foram os títulos anteriores da produtora, porém, o problema está na forma como ocasionalmente ficamos no meio de um quintal sem saber muito bem para onde ir. A esfera que nos devia guiar a partir do momento em que decidimos que chegamos ao final da exploração de determinado local nem sempre está nos locais devidos, o que faz com que se ande alguns minutos à toa.

Na segunda parte, somos levados para outras partes de Yaughton cujo design favorece mais a exploração sem medo de ficarmos perdidos, o que torna a experiência bastante mais agradável. E, contrariamente, ao que aparenta a primeira hora, nunca chega a haver um problema de diversidade com os cenários, com a produtora a demonstrar um design inteligente, capaz de instigar sempre a novidade renovando o que se tem para explorar.

Além da narrativa, Everybody's Gone to the Rapture será recordado pela sua componente técnica. Desenvolvido no CryEngine, não só o quadro geral é deslumbrante como todos os recantos se apresentam com uma atenção ao detalhe quase obsessiva. Independentemente do momento em que estão, tudo parece disposto de forma lógica e extremamente bela, ou seja, estamos perante horas em terreno carismático, terreno em que facilmente acreditamos ter havido vida.

Se estivermos na casa de alguém que trabalha nos caminhos de ferro, há uma farda junto à porta, quadros com comboios e a miniatura de uma pista em construção no andar de cima. Ou desenhos de crianças afixados na parede onde houve um espectáculo. Já na segunda parte começa a chover, mostrando os dotes da equipa nos reflexos das poças, nas texturas molhadas, a atmosfera muda completamente numa execução tão boa que parece natural e fácil. 

A outra componente técnica que ficará na memória é a sonoplastia. Desde a vocalização em inglês cerrado e capaz de demonstrar várias emoções de forma credível — o jogo tem legendas em português que são úteis em certos sotaques mais carregados — à banda sonora assinada por Jessica Curry. Não é só uma excelente banda sonora, é uma das melhores do ano. Orquestrada e com coros irrepreensíveis, ajuda a sublinhar as emoções já mencionadas, seja a exaltação ou a angústia. E mesmo retirada do jogo continuam a ser excelentes temas. Não é “hipoteticamente daria um excelente album” mas é algo dito com experimentação, uma vez que já foi publicada em formato físico e em serviços como o Spotify ou o Apple Music. 

Everybody's Gone to the Rapture começa como um grande mistério e acaba por representar as angústias humanas. Quem jogou e gostou de Dear Esther e Amnesia: A Machine for Pigs facilmente chegará ao final da nova empreitada da The Chinese Room com a sensação que a espera valeu a pena. A história é inteligentemente alicerçada por um grafismo e banda sonora que enchem os olhos e os tímpanos. Nota-se a maturidade de quem comandou a produção e nota-se, sobretudo, que é uma obra criada com coração.

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