Sonhos de imigrantes numa cozinha que está aberta 24 horas por dia

Estes jovens chegaram a Portugal quando os números de imigração já estavam a baixar. Projecto do Serviço Jesuíta aos Refugiados ajuda a integração de “migrantes em situação de extrema vulnerabilidade”.

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A cozinha industrial do Grupo Jerónimo Martins é um dos locais onde se dá formação Enriv Vives-Rubio

Solita Nandingna, 22 anos, saiu da Guiné-Bissau há quase quatro anos, com a expectativa de arranjar emprego em Portugal. Acabou por perceber que era mais difícil do que esperava. As saudades começaram a apertar. Emprego, nada.

Agora, aqui está ela, de touca e bata brancas, de calças de xadrez azul, a embalar crumble de pêra em caixas de plástico transparente que será vendido nos supermercados Pingo Doce. O seu percurso nos últimos meses — de estagiária nesta mega-cozinha que só fecha no dia de Natal e no primeiro dia de cada ano, e onde trabalham mais 150 pessoas, a recém-contratada — tem sido elogiado. “Ganhou o gosto pelos doces”, comenta-se. Da secção de sobremesas onde trabalha saem todos os dias centenas de doses de arroz-doce, de tiramisu, de baba de camelo...

A guineense faz parte do grupo de 45 jovens que integram um projecto do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS– Portugal), em parceria com o Grupo Jerónimo Martins (GJM) e o Agrupamento de Escolas Pintor Almada Negreiros, em Lisboa. O projecto chama-se Capacitação 4 Job.

O objectivo é “formar 45 jovens migrantes que estão em situação de extrema vulnerabilidade” e integrá-los no mercado de trabalho, diz André Costa Jorge, director do JRS.

O financiamento vem do Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu (EEA Grants), um programa da Noruega, Islândia e Liechtenstein destinado a reduzir as disparidades sociais e económicas na Europa, que é gerido, em Portugal, pela Fundação Calouste Gulbenkian. Os 45 jovens foram escolhidos entre “os mais vulneráveis” — têm em média 25 anos, “não têm meios para subsistir e, nalguns casos, não tinham formação nem académica nem profissional que possibilitasse uma integração social”, diz André Costa Jorge.

“São jovens com alguma escolaridade que adquiriram nos seus países mas há um hiato enorme entre o que aprenderam e o que o mercado de trabalho precisa.” Muitos falam mal português. Têm, contudo, “muita vontade em aprender”. Este programa dá-lhes armas para estarem mais preparados para competir por um posto de trabalho. Pelo menos, é a ideia.

Há jovens da Guiné-Bissau (11), Cabo Verde (8), São Tomé (13), um da Índia, outro da Costa do Marfim, uma jovem do Senegal... Chegaram a Portugal há um ano, dois, três, quatro... indiferentes à crise e à diminuição do emprego. Chegaram quando os números de imigração já estavam a baixar. E quando muitos outros procuravam outras paragens para melhorar a vida.

“Portugal ainda é para muitos um país de atracção, no imaginário popular, social; ainda é um lugar onde há oportunidades”, nota André Costa Jorge. “Uma guineense, por exemplo, que chega tem muita dificuldade em chegar cá, mas vem. E é preciso apanhar um avião — e por isso quem chega nem é a população mais pobre, é quem pode” pagar o bilhete.

Cada grupo do 4 Job tem 15 formandos, não mais. Nos primeiros três meses vão à Escola Básica da Alta de Lisboa para melhorar o português, adquirir “conhecimentos sobre os hábitos e a cultura do país”, perceber alguns códigos, entrar em contacto com os direitos e os deveres de quem está num contexto de trabalho — “A importância da pontualidade, por exemplo” —, mas também primeiros-socorros, técnicas de procura de emprego...

“Nessa fase eles próprios dão uma espécie de formação aos alunos da escola”, conta André Jorge. Transformam-se em animadores. “Não estão ali só numa posição de receptáculo, desenvolvem uma série de actividades com os alunos da escola onde há possibilidade de transmitirem conhecimentos que já têm, através de jogos, por exemplo... é algo que permite que as pessoas se vejam como responsáveis por um conjunto de tarefas.”

O segundo bloco de três meses é passado em formação em contexto de trabalho. Na cozinha industrial do GJM, mas também pode ser nas lojas propriamente ditas, com outras tarefas. “Não é certo que as pessoas fiquem a trabalhar, mas do primeiro grupo de 15, que começou a formação teórica em Novembro e a prática em Março, seis foram contratados” pela Jerónimo Martins, outros três foram trabalhar para outros locais, e outro transitou para o segundo grupo por questões de saúde.

Solita foi uma das que ficaram na cozinha de Odivelas — uma das três cozinhas industriais que o GJM tem no país, que funciona 24 horas por dia, todos os dias, sendo que aos domingos não há produção, são dedicados às limpezas.

Para já Solita tem apenas um contrato de seis meses. E um ordenado mínimo de 500 e poucos euros (“é mais quando se trabalha à noite”, diz ela), que tenta esticar para uma família de seis (ela, a mãe, que só trabalha alguns dias por semana, e mais quatro irmãos, todos a viver em Odivelas) mas que ainda não lhe permite mandar vir a filha. “Está agora com seis anos. Está com o pai. O SEF diz que eles não podem vir porque ele não tem meios de subsistência”, conta. “Já chorei no SEF.”

Mas Solita acredita que está mais perto de estabilizar a vida, de poder mandar vir a filha, agora com seis anos, para junto dela. Ter um emprego — mesmo que para já seja um contrato de seis meses — era o primeiro passo. E pelo meio ganhou mais um sonho, um objectivo: “O sonho de fazer uma carreira a fazer bolos de casamentos e de aniversário e para eventos. Mas ainda tenho que aprender muito e ganhar muita experiência”, explica, com um português hesitante. “Na Guiné falamos mais crioulo”, justifica-se. “A língua é mesmo o que custa mais na adaptação a Portugal.”

O primeiro salário
Quem não é contratado continua a ser acompanhado pelo JRS durante mais dois meses. “Ajudamo-los a procurar trabalho”, diz André Jorge que acredita que depois deste programa encontrar colocação será mais fácil para qualquer um destes jovens imigrantes, tendo no currículo a formação adquirida nos últimos meses, em contexto de trabalho. Um terceiro grupo iniciará a formação profissional em Outubro.

O dirigente do JRS diz-se, de resto, muito satisfeito com a parceria com o GJM, mas gostava de ter mais empresas a aderir. “Em muitas outras empresas ouvimos a frase ‘não somos a santa casa da misericórdia’. Aqui, há uma ideia de responsabilidade social. E foi muito impressionante para mim, que já bati à porta de muitas empresas, perceber que depois de enviarmos os dossiers com o projecto, chegámos à primeira entrevista e eles sabiam tudo sobre o JRS e tudo sobre o nosso projecto...”

Solita começou a formação profissional em Março, terminou em Junho e agora tem um contrato de trabalho. Já Cádi, 30 anos, senegalesa, começou a formação "em contexto de trabalho" em Junho. Ainda não sabe se fica.

É a primeira vez, em Portugal, que Cádi está em contexto de trabalho. “Cheguei há um ano e quatro meses”, conta enquanto desfia bacalhau para dentro de um tabuleiro. Atrás dela, um corrupio de carrinhos cheios de outros tabuleiros com cenouras cozidas e batatas. “O meu marido está cá há dez anos e vim para cá com a minha filha de 5 anos, deixei o meu filho de 14 lá...” O objectivo era arranjar trabalho e ir buscá-lo. Mas a história repete-se...

Passou um ano e não conseguiu. “Procurei sempre trabalho, mas toda a gente me dizia: ‘isto está fraco’, ‘isto está fraco’.” O dinheiro que o marido ganha como vendedor tem de dar para enviar para o Senegal, para outra parte da família dele que depende dele. E Cádi andava aflita. A assistente social que a acompanhava falou-lhe então do programa do JRS. Fez a parte teórica na escola. Diz que a formação prática está “a correr muito bem” — recebe dinheiro para as deslocações, aprende as diferentes tarefas de uma cozinha grande como esta. Encolhe os ombros. Se ficar poderá vir a ter o seu primeiro salário português. É nisso que pensa.

O JRS é uma organização internacional da Igreja Católica, fundada em 1980, sob responsabilidade da Companhia de Jesus. Tem como missão “acompanhar, servir e defender os refugiados, os deslocados à força e todos os migrantes em situação de particular vulnerabilidade”. Está presente em cerca de 50 países.


Dados sobre imigração
— No seu último relatório, referente a 2014, o Serviço de Estrangeiro e Fronteiras (SEF) assinala a “tendência decrescente da população estrangeira em Portugal”. Pela primeira vez, desde 2002, o número de estrangeiros residentes foi inferior a 400 mil — 395.195 cidadãos —, com uma diminuição de 1,5% face ao ano anterior.

— Há uma redução da representatividade da população estrangeira oriunda de países de língua oficial portuguesa. Mas a nacionalidade brasileira, com um total de 87.493 cidadãos, mantém-se como a principal comunidade estrangeira residente. A segunda é Cabo Verde. Os ucranianos aparecem em terceiro lugar e em quarto os romenos. A China passou a ser a quinta nacionalidade mais relevante (21.402 residentes), com um crescimento de 14,8%, suplantando Angola (19.710 residentes).

— Como principais factores explicativos para a diminuição de estrangeiros, “concorrem a aquisição da nacionalidade portuguesa, a alteração de fluxos migratórios e o impacto da actual crise económica no mercado laboral”, diz o SEF.

— No entanto, assinala ainda o SEF, foi também em 2014 que pela primeira vez nos últimos anos, o número de novos títulos de residência emitidos aumentou — 6,1%, para 35.265. Isto foi “em parte potenciado pelo regime de autorização de residência para actividade de investimento” — regime ARI/Golden Visa e regime fiscal para residentes não habituais.

— Olhando apenas para os títulos emitidos em 2014: destaque para o crescimento da França (174,5%), totalizando 1930 novos títulos emitidos, e da China (100,1%), com a emissão de 3728 títulos. As nacionalidades mais relevantes nos novos títulos são: o Brasil (5560), China (3728), Roménia (2455), Cabo Verde (2185) e França (1930).

— Por género, verifica-se a paridade entre os títulos emitidos a homens (17.932) e mulheres (17.333).

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