Os (futuros) médicos vão à montanha

São 25 estudantes de Medicina, em cinco aldeias isoladas. Medem níveis de glicemia, tensão arterial e índice de massa corporal a idosos que vão encontrando ainda a trabalhar nos campos, apesar das dores nas articulações.

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Depois de longos minutos, Victória convence, finalmente, Clementina e mede-lhe a tensão Adriano Miranda
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É preciso evitar a água de um ribeiro que escorre encosta abaixo. Depois, há que saltar um muro, porque o portão metálico está demasiado enferrujado para abrir. Para lá da cerca de granito, já depois de uns ramos rasantes de videira, abre-se um cenário impressionante: o vale pintado de verde, entre os terrenos agrícolas em socalco e a vegetação da serra do Soajo. É num desses campos, contornados por milho, que Victória Matos, 21 anos, encontra Clementina, de 82.

A jovem é estudante de Medicina. “Um dia vou ser médica”, diz à mulher que a recebe no terreno de que é proprietária, em Lordelo, uma aldeia de Arcos de Valdevez. “Melhor, que há poucos”, responde. Para trás já tinham ficado sete quilómetros no meio de uma estrada de serra, em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG), entre garranos à solta e vacas pastando nas zonas mais íngremes da montanha. Mas para entrar no campo de Clementina ainda era preciso um último esforço.

Victória explica ao que vem: é um dos 25 futuros médicos que passaram os últimos dias em contacto com as pessoas mais velhas de cinco aldeias deste concelho do Alto Minho, no âmbito do programa “Aldeia Feliz”. É uma iniciativa do Núcleo de Estudantes de Medicina da Universidade do Minho (NEMUM), que foram aos terrenos agrícolas e às casas das pessoas recolher historiais clínicos, medir níveis de glicemia, tensão arterial e índice de massa corporal, por exemplo. Os dados recolhidos foram depois encaminhados para o Centro de Saúde local e, nos casos mais urgentes, para os serviços sociais da câmara.

Esta é a primeira vez que estes jovens fazem este trabalho, em regime de voluntariado e durante as férias. “Enquanto estudantes de Medicina, quando começamos a chegar aos hospitais, começamos a contactar com esta franja da população mais isolada e mais envelhecida”, explica Victória. “É aí que percebemos realmente todas as problemáticas que estão associadas a este envelhecimento.”

Clementina apoia a foicinha sobre o ombro direito. Coça a cabeça com a ponta da lâmina com uma perícia arrepiante. E não disfarça a impaciência: “Eles já estão a assobiar, que querem ir embora.” No seu terreno, há um grupo de homens a cortar feno. Com a hora do pôr-do-sol a aproximar-se, querem terminar o dia de trabalho e voltar a casa. Victória Matos pede-lhe mais uns minutos para completar o trabalho que ali veio fazer.

Isolados
Portugal é o sexto país mais envelhecido do mundo, algo que contrasta radicalmente com a que se verificava na década de 1970. O país era então o menos envelhecido da Europa e mesmo que esta seja uma realidade transversal a todo o continente, o fenómeno português teve um crescimento mais acelerado do que o que aconteceu nos seus parceiros europeus. A idade média da população portuguesa — que em 1960 não passava dos 28 anos atingiu, em 2011, 42 anos. O número de pessoas com menos de 15 anos é hoje inferior àquelas com idade igual ou superior a 65 anos.

Mas este é também um país onde os mais velhos vivem mais isolados. É isso que tem divulgado a GNR, com os dados do Censo Sénior, realizado anualmente. Os números mais recentes, publicados em Março, apontam para a existência de quase 34 mil idosos a viverem sozinhos ou num local com fraca acessibilidade — mais 17% do que no ano anterior.

Estes são os dados que fazem com que Victória Matos, que coordena o “Aldeia Feliz” na direcção do NEMUM, diga que este o projecto, apesar de estar ainda a nascer, “é já uma certeza de que será para continuar”. Nos dados da GNR, o distrito de Braga nem é dos mais afectados pelo isolamento dos idosos — Viseu, Beja, Guarda e Évora aparecem no topo da lista — mas esta é uma região de contrastes.

No litoral, há cidades como Braga, Guimarães ou Famalicão, mas no interior há concelhos com áreas dificilmente acessíveis, especialmente nas serras. Foi por isso que os estudantes de Medicina da UM escolheram Arcos de Valdevez para lançar o projecto. Ali encontraram exemplos bem evidentes do isolamento que afecta os mais velhos.

Na aldeia de Lordelo não passam transportes públicos. Os habitantes, quando têm que ir ao médico, têm que pedir boleia a algum familiar. Ou, se estes não estão por perto, como os filhos de Manuel, emigrados no Luxemburgo, não há outro remédio que não seja chamar um táxi.

A localidade fica a mais de 20 quilómetros de Arcos de Valdevez, onde está o Centro de Saúde, e a viagem, de ida e volta, custa 35 euros. Demasiado para quem recebe uma pensão curta. “Só lá vou de seis em seis meses”, explica. Ele também foi emigrante, em França, onde andou a “ganhar a vida” como conta. Agora fica feliz com menos: “Só preciso de me levantar vivo que o dia já está ganho.”

O retrato é duro, mas não espanta os estudantes de Medicina, que já contavam encontrar situações como esta num concelho que está tão próximo da costa como da fronteira com Espanha e tem boa parte da sua área dentro do PNPG. A proposta para tornar Arcos de Valdevez a primeira área de intervenção do “Aldeia Feliz” foi feita à câmara e teve “toda a receptividade”, segundo os dirigentes do NEMUM.

“Não faça força agora”
“Quando nos falaram nesta possibilidade, disse logo que sim”, confirma o presidente da autarquia, João Manuel Esteves. O envelhecimento da população é um dos temas que preocupa o novo autarca, que espera poder lançar durante o mandato uma rede de cuidadores voluntários para os idosos do concelho que vivem em regiões mais isoladas: “Estas pessoas às vezes precisam de alguém que lhes dê atenção mais do que um medicamento.”

Na última semana, o “Aldeia Feliz” fez mais do que o diagnóstico médico. Também conversou com as pessoas sobre as suas vidas e, no domingo passado, houve um churrasco que reuniu estudantes de Medicina e habitantes das aldeias, no espaço da porta do PNPG no Mezio, uma das cinco entradas do único parque nacional português. Num projecto como estes, é preciso conquistar a confiança destas pessoas.

Depois de longos minutos, Victória convence, finalmente, Clementina e mede-lhe a tensão. Pede-lhe que se encoste numa das lajes de granito que seguram os taludes do terreno. “Não faça força agora, respire fundo e tente não falar”, diz calmamente.

Maria foi mais fácil de conquistar. Rapidamente começou a falar dos seus problemas de saúde. Queixa-se de dores nas articulações. Mas todos os dias ainda vem aos campos da aldeia trabalhar. Tal como Clementina, tem 82 anos, a mesma idade de Manuel. Os três contemporâneos da aldeia de Lordelo ajudam-se nas tarefas agrícolas e partilham as consequências de viveram naquele lugar, demasiado longe da sede de concelho para tornar mais frequentes as visitas ao médico.

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