Médicos ou pais… quem tem a última palavra no tratamento de uma criança?

Os pais de Ashya e de Safira cruzaram-se com os médicos numa zona cinzenta. Quando não há acordo sobre os tratamentos de uma criança, a quem cabe a última palavra? Especialistas ouvidos pelo PÚBLICO dizem que as polémicas são pouco comuns e que devem ser analisadas caso a caso. Mas a legislação nem sempre dá resposta.

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Aysha King, cinco anos, tem um tumor cerebral. Os pais decidiram tirá-lo do hospital e levá-lo para tratamento noutro país REUTERS/DAVID W. CERNY
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Miguel Oliveira e Silva, presidente do CNECV: “Regra geral, a decisão compete aos pais, mas a lei protege o interesse dos menores” Público

Ashya King tem cinco anos, um tumor cerebral e vive no Reino Unido. Safira Mateus tinha quatro quando em 2010 lhe foi diagnosticado um cancro renal, e foi encaminhada para o Instituto Português de Oncologia de Lisboa. Além dos tumores em idade pediátrica, estas duas crianças têm também em comum uma decisão polémica: em ambos os casos os pais procuraram tratamentos alternativos, tiveram dificuldade em que conseguir a chamada “alta contra parecer médico”, por estarem em causa menores e não adultos, mas acabaram por ultrapassar os obstáculos judiciais. O principal problema da legislação está nas chamadas “zonas cinzentas”, defendem os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO.

A alta contra a vontade do médico está prevista na legislação portuguesa e mesmo em termos da codificação interna dos hospitais, que têm de referir as razões e destino após a alta – esta é uma das hipóteses. A própria Carta dos Direitos do Doente Internado refere, num ponto intitulado “O doente internado tem direito à sua liberdade individual”, que o doente “pode, a qualquer momento, deixar o estabelecimento”, isto desde que tenha sido “informado dos eventuais riscos que corre”.

“Este exercício de liberdade individual requer, no entanto, algumas formalidades. O doente tem de ser informado dos riscos decorrentes da sua decisão e terá de assinar um termo de responsabilidade pela sua alta”, lê-se no documento. Há excepções, mas sobretudo relacionadas com doenças infecciosas e mentais. Numa carta semelhante, mas sobre as crianças e adolescentes até aos 16 anos, nada é referido sobre este ponto em concreto.

O problema é que a questão é mais linear no caso dos adultos. “No caso das crianças, regra geral, a decisão compete aos pais, mas a lei protege o interesse dos menores e essa alta só existe se não colocar no imediato a vida em risco, mas não há uma regra clara. É visto caso a caso. A meu ver e bem, costuma imperar a vontade dos pais desde que não haja risco no momento”, salienta ao PÚBLICO o presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), Miguel Oliveira da Silva, que ressalva que as regras existentes estão sobretudo pensadas para os casos de recusa de qualquer tratamento e não para quando os responsáveis legais querem antes um protocolo distinto – as “zonas cinzentas”.

O tema das altas das crianças voltou a ser discutido quando o caso de Ashya se mediatizou na última semana, depois de os pais do menino terem optado por retirá-lo do hospital onde estava internado no Reino Unido, mesmo sem terem tido luz-verde dos médicos. A ideia era levá-lo para Praga, na República Checa, para submeter a criança a um tratamento com raios de protões que não era disponibilizado no Serviço Nacional de Saúde inglês, o NHS. Do lado do hospital os médicos diziam que a eficácia do tratamento não estava demonstrada no tumor do menino, os progenitores garantiam ter dados contrários.

Os pais de Ashya pensaram encaminhar-se primeiro para França, mas acabaram a fugir para Espanha. As autoridades inglesas solicitaram a sua detenção e extradição. Mas, depois de várias intervenções, nomeadamente com o primeiro-ministro, David Cameron, a mostrar-se solidário com os pais, as acusações por suspeita de maus tratos foram retiradas e o casal acabou por ser libertado. A guarda da criança foi temporariamente retirada aos pais, mas esta segunda-feira as autoridades judiciais de Portsmouth decidiram numa audiência autorizar que seguissem para Praga.

A situação de Ashya tem desencadeado algumas discussões em termos do direito da saúde e da bioética. A quem cabe a última palavra no tratamento de uma criança? Aos pais ou aos médicos? As opiniões nem sempre coincidem, e a resposta mais consensual é “depende” – pois deve ser sempre o interesse da criança a prevalecer. Ao jornal ABC, Arthur Caplan, especialista em bioética da Universidade de Nova Iorque, defende que este caso foge à situação mais comum, em que “há um tratamento comprovadamente eficaz que os pais recusam” colocando em risco a vida da criança. Caplan salienta que os progenitores apenas defendiam outro protocolo, acrescentando que, não sendo uma mera recusa de tratamento, os pais devem poder optar por seguir para Praga.

O caso português de Safira
Miguel Oliveira da Silva recorda o caso de Safira, a menina portuguesa a quem em 2010 foi diagnosticado um cancro renal, um tumor de Wilms, como inédito nesta “zona cinzenta”. A criança foi operada no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa depois de ser submetida a vários ciclos de quimioterapia. Depois da cirurgia os médicos propuseram que Safira fizesse mais tratamentos adjuvantes, isto é, só para prevenir que o cancro regressasse. Só que os pais da menina encontraram na Alemanha uma resposta que consideraram mais promissora para esta etapa final do tratamento de Safira: as células dendríticas.

O problema, explica ao PÚBLICO Gabriel Mateus, pai de Safira, agora a fazer nove anos e livre do tumor, é que o IPO tinha outro entendimento e desencadeou-se uma batalha legal, com o tribunal a decidir entregar a guarda da menina ao hospital. “Nós queríamos apenas procurar outras formas de obter o mesmo fim mas sem os mesmos efeitos secundários. O procedimento do IPO e do tribunal foi bastante lamentável, não por terem outra posição mas porque nem fomos ouvidos no processo”, relata Gabriel Mateus, que lamenta ainda “a colagem que se tentou fazer de que a nossa preocupação não era racional mas sim subjectiva e do foro religioso ou filosófico”. 

Para Paula Lobato de Faria, professora da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, as lacunas legais estão na origem de casos como o de Safira. De acordo com a especialista em Direito da Saúde e Bioética, a legislação que deveria estabelecer as regras sobre menores carece de regulamentação. Em Março, foi publicada a Lei n.º 15/2014, sobre os direitos e deveres dos utentes dos serviços de saúde e que actualizou matérias que não eram revistas desde a Lei de Bases da Saúde de 1990. No Artigo 11.º, sobre menores e incapazes, diz-se que podem “recursar assistência, com observância dos princípios constitucionais” mas a sua concretização é deixada para uma fase posterior.

Ainda assim, Paula Lobato de Faria recorda um parecer “fundamental” da Procuradoria-Geral da República, feito em 1991, na sequência de dúvidas levantadas pelo Hospital de Guimarães. Nas conclusões do parecer, é defendido que o poder parental deve ser sempre “exercido altruisticamente no interesse do filho, de harmonia com a função do direito, consubstanciada no objectivo primacial de protecção e salvaguarda dos seus interesses”. Desta forma, pode ser decidida uma “inibição do poder parental” ou uma limitação do mesmo sempre que a “segurança, a saúde, a formação moral ou a educação de um menor se encontre em perigo”.

Por outro lado, “ao médico cumpre o dever de esclarecer os pais - e o menor, em função da sua idade e capacidade de discernimento -, prestando-lhes a gama de informações que os habilite a uma tomada de decisão consciente, no interesse do filho”, lia-se no parecer, que dizia claramente que deve dar-se “prevalência à decisão médica” se houver “perigo para a vida ou grave dano para a saúde do menor”.

Um problema de comunicação
No caso de Safira, com a publicitação da situação, a família acabou por conseguir avançar para o procedimento que queria, mas acabou por criar o Projecto Safira, dedicado às escolhas informadas no tratamento do cancro e que pretende ainda conseguir que o enquadramento legal seja revisto para que os pais exerçam o “direito de participar na escolha do tratamento a seguir”.

Até agora, Gabriel diz que não tiveram conhecimentos de mais casos como o de Safira ou de Ashya. Mas alerta para a importância de se trabalhar a comunicação na área da saúde para “contrariar o modelo social” em que “a participação do doente é incómoda, seja em adultos ou em crianças”. “É absurdo assistirmos a uma mobilização policial para prender os pais de Ashya como se estivessem a capturar criminosos. No fundo estão a ir atrás de um indivíduo que está a ser pai, a escolher o que acha melhor para o filho”, justifica o pai de Safira.

Apesar da polémica, o presidente da Associação Portuguesa de Bioética acredita que “estas zonas cinzentas são raras, uma excepção”. “Em Portugal o enquadramento ético e jurídico é relativamente claro, mas é natural que no futuro surjam evoluções com a dimensão social que vem dos meios anglo-saxónicos”, explica Rui Nunes. Até porque, sublinha, muitas das normas foram criadas para dar resposta a situações como as recusas de transfusões de sangue por motivos religiosos, como é o caso das Testemunhas de Jeová, e agora a evolução da medicina traz outros desafios.

O também médico lembra que a protecção vigora até aos 16 anos, fazendo-se uma distinção entre crianças e adolescentes, “ainda que sempre que o doente tenha discernimento isso seja considerado” e possa alterar o curso do tratamento. “Em qualquer caso a preocupação é defender o melhor interesse da criança e os médicos repousam no bom-senso e esclarecimento dos pais, sendo que há uma cultura de autonomia familiar. Quando há problemas, ou seja, quando não é defendido o melhor interesse, tanto os médicos como o hospital podem recorrer aos tribunais”, acrescenta Rui Nunes, que assegura que na avaliação dos casos impera o “bom-senso”, pelo que “o estabelecimento de uma relação empática com os doentes e a família é fundamental, o que no actual clima adversativo com consultas de seis ou sete minutos não é possível e pode levar a casos de litígio desnecessários”.

“O caso de Ashya acabou por entrar no campo do direito criminal por ter sido tirado à força do hospital, o que levantou dúvidas sobre as verdadeiras intenções dos pais. Mas sempre que seja para seguir outro tratamento credível deve imperar a vontade dos pais, sendo que são questões complexas que surgem muitas vezes ex novo, isto é, não se previram”, completa Paula Lobato de Faria. Sobre a realidade portuguesa, a professora aponta como problema o facto de “não sermos bem informados da consequência da recusa do tratamento ou mesmo dos benefícios de o fazer”, pelo que considera que esse campo pode ser melhorado. Haverá sempre espaço para "zonas cinzentas" neste tipo de questões complexas mas há coisas simples que podiam estar preto no branco.

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