Descobrir o outro lado da música

Um bom professor de música deve saber despertar e reconhecer o talento numa criança, diz Daniela Coimbra. A investigadora dedicou muitos anos ao estudo – de instrumentos, mas sobretudo da Psicologia da Música – para perceber de que matéria são feitos instrumentistas e cantores.

Daniela Coimbra introduziu a disciplina de Psicologia da Música na ESMAE
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Daniela Coimbra lecciona Psicologia da Música na ESMAE em 2009 Paulo Pimenta
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A professora introduziu também a disciplina opcional de Gestão da Carreira Artística Paulo Pimenta

Daniela Coimbra estudou canto, piano e flauta de bisel, mas o que mais a fascina é o outro lado da música. Saber como se lê uma partitura ou se memorizam milhões de notas para um recital de piano; entrar na mente dos músicos e descobrir o que os distingue de outros profissionais; perceber como se pode ensinar bem alunos de todas as idades. Não só ensinar, mas despertar e reconhecer o talento numa criança.

O seu conhecimento da música passa pelo estudo aprofundado da personalidade de instrumentistas e cantores, dos seus atributos e processos de memorização de partituras.   

Primeiro: o mestrado em Psicologia da Música. Universidade de Sheffield, Reino Unido. E aqui o foco da sua investigação foi a memória dos pianistas, que são os músicos que mais tradição têm de tocar sem pauta. Depois: o doutoramento, na mesma universidade, no centro de Inglaterra, na mesma altura em que a Guidhall School of Music & Drama de Londres procurava investigadores para um projecto de observação dos cantores de ópera e dos seus processos de avaliação. Foi escolhida. E a sua conclusão: “Além dos desempenhos técnico e artístico, o júri dava especial atenção à personalidade dos cantores.”

Foi uma porta que nunca antes experimentara. E que se abriu. A investigadora prosseguiu então o doutoramento sobre o tema da personalidade dos músicos criativos, abertos a novas experiências e persistentes. Seguiu-se um pós-doutoramento no Royal College of Music em Londres e na Universidade Católica em Lisboa. No início de tudo: uma licenciatura em Educação Musical. Hoje é professora e investigadora na área de Psicologia da Música, uma disciplina introduzida na Escola Superior de Música, Artes e Espectáculo (ESMAE) no Porto, com a sua chegada em 2009, quando até então o que existia era Psicologia da Educação. Este universo menos exposto da música já era estudado em Inglaterra. Em Portugal começou então a ser.

Desde a sua chegada a Portugal, diz, Daniela Coimbra entra diariamente numa escola com 450 alunos que querem ser músicos. E está “optimista”. Todos – ou quase todos – serão músicos. Apenas uma pequeníssima minoria será performer de elite e viverá só da música, mas depois de entrarem numa escola superior de música, muito poucos voltam atrás na escolha. Este é um longo percurso para um raro destino. “Não há uma receita para todos os músicos. Também tem a ver com o corpo, com a mente de cada um.” Serão precisas dez mil horas de estudo para uma pessoa se tornar um músico de alto desempenho, diz Daniela Coimbra. Dez mil horas, de solidão ou ao lado de um professor.

“Os músicos têm de ser pessoas capazes de estar nesta solidão, e capazes de gostar dessa solidão. Mas é preciso que eles próprios sejam persistentes e consigam lidar com o isolamento.” E exemplifica: “Uma criança aos oito anos pode ter que estudar meia-hora por dia sozinha. Mas aos 18 anos, um músico profissional estuda cinco horas por dia. E estuda sozinho. É deste isolamento que pouco se fala.”

É preciso gostar muito, ver frutos do trabalho. É preciso paixão. O isolamento, a disciplina e a perseverança estão sempre – ou devem estar – lá. E mais: “Os músicos têm de conseguir ser expressivos na sua performance. Um pianista toca uma sonata de Mozart, já tocada por muitos outros antes dele, e à qual quer dar voz. Ele quer ser criativo. E isto é muito difícil. O que pode ele dizer de novo? É uma angústia. Ele sabe que a qualidade de interpretação e a qualidade da expressividade fazem a diferença.”  

O controlo da ansiedade e uma capacidade superior de persistência e de foco no trabalho são outros dos traços da personalidade de um músico de excelência. Por fim, a criatividade e a abertura a novas experiências vão permitir a quem vive para a música ser dotado de inspiração.

Rossini, Bach e Youssou N'Dour
Daniela Coimbra tem em Rossini o seu compositor preferido ("pela parte vocal", diz) e na sua Missa Solene a obra no topo das escolhas. “Também Bach, claro”, acrescenta. Entre os contemporâneos, elege não só o compositor alemão Helmut Lachenmann, que tem actuado na Casa da Música, no Porto, mas também um artista pop africano, o compositor e intérprete senegalês Youssou N’Dour pela sua presença em palco e “os concertos electrizantes”.  

Os músicos têm sempre “um elevado nível de criatividade” e, associado a isso, muita abertura para novas experiências. “É aí que eles se destacam das outras pessoas”, diz a professora. “Outros grupos – como actores, arquitectos ou filósofos – também poderão ter esse elevado grau de abertura a novas experiências, mas na verdade os músicos, e os cantores de ópera em especial, demonstram níveis significativos de abertura a novas experiências.”

Além desta “criatividade notória”, como diz a investigadora, “os músicos que conseguem ir mais longe são os mais conscienciosos”. E lembra uma frase de Picasso – “quando a inspiração vier, eu espero estar a trabalhar” – para explicar aquilo que se passa com os músicos. “Têm que trabalhar muito, mas têm também de ter essa inspiração, essa criatividade, que advém do trabalho, mas também da sua abertura a novas experiências.”

Além da personalidade dos músicos, também a memória dos pianistas lhe despertou um interesse especial. “Eu estava fascinada com a quantidade de informação que os pianistas processam nos seus recitais”, explica. “Quis saber quais os processos de cognição, como aprendem eles as partituras e como memorizam toda a informação.”

Ter ou não ter pauta é uma opção que se coloca a todos os instrumentistas mas a investigadora escolheu os pianistas por serem os músicos que mais escolhem tocar sem pauta em recitais. “Devem os alunos tocar com partitura ou sem partitura?” – A questão colocava-se de forma insistente em 1998 e durante algum tempo nos conservatórios de música, quando Daniela Coimbra estava em Inglaterra. Falava-se muito disso, recorda.

“Os músicos a Norte da Europa tocavam mais com partitura do que os do Sul da Europa, que optam por ter sempre as peças memorizadas. Tocar com partitura, por um lado, põe o músico mais confortável, porque tem ali uma segurança. Tocar sem partitura também o pode libertar mais em palco, e fazer com que se torne mais espontâneo mesmo que tenha um pequeno erro. Um pouco como um trapezista sem rede. Isso solta-o. O público, por vezes, também gosta disso.”

Automatizar para memorizar
E como se voa sem rede? “Os pianistas têm milhões de notas num recital de uma hora. Se cada nota fosse um evento para a memória seria muito difícil", explica Daniela Coimbra. "Eles têm que organizar a nota, não em termos individuais, mas em termos de frase, de estrutura. Depois usam vários tipos de memória, como a memória motora, que vão adquirindo com as muitas horas de estudo.”

E acrescenta: “Primeiro, os músicos têm que organizar o material, e adquirir uma compreensão estrutural muito grande do que vão fazer. O truque para eles, e nesse sentido não são muito diferentes das outras pessoas, é organizarem o material de uma forma bastante eficaz para poderem incluir muita informação num nível pequeno.”

Autora e co-autora de vários estudos sobre Saúde e Bem-Estar dos Músicos, Daniela Coimbra chegou a outras conclusões sobre a memória: “Os membros que tocam já estão automatizados, processam muita informação. Para isso, têm que ganhar uma aquisição motora de todos os movimentos que vão fazer. Isso demora muito tempo, mas à medida que os vão automatizando, também os vão memorizando. Depois têm de recorrer a essa memória mecânico-motora, mas também à memória auditiva e também à memória visual. Têm que entender a estrutura toda da obra, dividi-la em partes, em frases, até chegarem novamente à nota.”

Porque a música exige milhares de horas de dedicação, a investigadora compara um músico a um atleta de alta competição. E pela prevalência “muito grande” de lesões físicas entre os músicos. Os violinistas, por exemplo: “Ninguém foi desenhado para estar, seis ou sete horas por dia, numa posição assimétrica, com um instrumento pesado e que exige muita coordenação auditiva, motora. Para o fazer, é preciso ser muito bom e trabalhar muito.”

Não é uma dor que os impeça de tocar, explica. “Mas entre os 50% a 85% dos músicos dizem que a dor é um companheiro permanente. Isto também acontece nos atletas. Alguns dizem: ‘eu não sei jogar sem dor’.” E conclui: “Um músico é um profissional de alto desempenho. Como um atleta de alta competição. São profissionais que estão no alto desempenho, num nível de excelência da realização."

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