Velhos hábitos custam a morrer

O brilho mediático dos ministros apenas serve para distrair os jornalistas do lugar onde a sua atenção deveria estar realmente focada. Secretarias de Estado, institutos, direcções-gerais — é verdadeiramente aí que se define o funcionamento da máquina do Estado.

As notícias que têm surgido na imprensa a propósito do caso dos vistos gold desesperam qualquer pessoa que sonha com um Portugal mais transparente e menos dado ao compadrio. O jornal i tem vindo a divulgar uma série de notícias que vão além do caso propriamente dito, e que colocam em causa o alegado esforço que o Governo tem vindo a fazer para aumentar a transparência do Estado e diminuir a cultura da cunha e dos jobs for the boys.

As notícias têm como base um acórdão do Tribunal da Relação que dispara em várias direcções. Embora o protagonista seja o antigo presidente do Instituto de Registos e Notariado (IRN) António Figueiredo, a verdade é que do ex-ministro Miguel Macedo ao presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, passando pelas avaliações do CreSAP, é um ver se te avias de trocas de favores e uma dose cavalar do velho “factor C”. Figueiredo, segundo parece, é uma daquelas figuras intermédias do Estado que vivia no melhor de dois mundos: não estava sujeito a qualquer escrutínio mediático, porque ninguém quer saber o que o presidente do IRN anda a fazer, mas detinha um poder efectivo enorme, já que era o porteiro de uma entrada por onde nos últimos anos passaram muitos milhões de euros.

Demasiadas vezes, o brilho mediático dos ministros apenas serve para distrair os jornalistas do lugar onde a sua atenção deveria estar realmente focada. Secretarias de Estado, institutos, direcções-gerais — é verdadeiramente aí que se define o funcionamento da máquina do Estado e é esse o lugar onde práticas pouco escrupulosas se traduzem facilmente em muito dinheiro no bolso, seja dos próprios ou dos amigos. Contudo, quando se olha para as notícias oriundas do referido acórdão sobre os vistos gold, a originalidade não está tanto no facto de um alto quadro do Estado poder estar a usar o seu lugar em proveito próprio, mas na facilidade com que a sua influência transita por várias áreas, provando que ainda é preciso deglutir muito Montesquieu ao pequeno-almoço até a separação dos poderes ser assimilada nesta terra.

Há dois casos particularmente chocantes no noticiário que tem vindo a ser divulgado. Um deles é a forma como uma excelente ideia deste Governo a criação do CReSAP, comissão de selecção dos principais cargos da administração pública vai sendo sabotada através de uma rede de esquemas criados para colocar os boys nos devidos jobs. Ou seja, os boys continuam a encontrar o caminho para os seus lugares, como sempre e como dantes, só que agora têm de se sujeitar a um teatrinho mais demorado. Acredito que o CreSAP tenha o mérito de conseguir afastar os absolutamente incompetentes, mas há justas dúvidas de que sejam os mais competentes que estejam a ficar com os cargos que merecem.

O outro caso, especialmente grave, tem que ver com as transcrições de conversas entre António Figueiredo e o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Vaz das Neves, onde este se declara disponível para o ajudar. Vaz das Neves já garantiu ao PÚBLICO que as suas afirmações “foram completamente descontextualizadas”. E, de facto, não há notícia de que ele tenha feito alguma coisa por Figueiredo. Só que não se vê de que forma uma frase como “tudo o que o sotôr entenda que possa ser útil, porque eu conheço o sotôr, estou totalmente disponível para tudo” seja aceitável na boca de um juiz desembargador. Nós sabemos que o país é pequeno. Mas isto já denota demasiado prazer em viver num T0 atafulhado em promiscuidade.

Jornalista; jmtavares@outlook.com

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